(O Estado de S. Paulo) Mulheres andam nos vagões cor-de-rosa dos metrôs em busca de segurança, pois somente segregadas pela geografia do medo poderiam transitar para escola, trabalho ou lazer em horários considerados impróprios à solidão feminina na cidade. Mulheres, além de transporte, precisam de segurança. E não só para se mover, mas também para permanecer no espaço público sem medo da discriminação
“Passagem mais cara que maconha”, “odeio bala de borracha, joga um Halls” ou “mais felicidade e menos Feliciano” foram alguns dos cartazes do povo nas ruas. Críticos ou bem-humorados, eles animaram as multidões que marcharam pelas capitais. Os números impressionam – em um único dia, mais de cem cidades se movimentaram, e 1,5 milhão de pessoas caminharam, lançando-se em uma onda de contestação ainda à espera da historiografia. Há quem descreva o povo nas ruas como o “gigante que acordou”; outros contestam, mostrando que trabalhadores, estudantes, gays ou mulheres nunca adormeceram ou deixaram de ocupar as ruas para protestar. A verdade é que as marchas urbanas parecem ter sido um prólogo do que se anuncia para 2014 com as eleições e o futebol.
Mas pelo que o povo marchava? As discussões sobre o agendamento político das mobilizações atiçaram os especialistas, mas as conclusões são frágeis. Nem partidos políticos nem movimentos sociais ganharam protagonismo nacional. Os líderes se faziam nas redes sociais, mas se organizavam e desapareciam nas ruas. As marchas urbanas nos confundiram – rostos da periferia se misturaram ao que foi descrito como o de “famílias”, pessoas que pareciam conhecer as ruas pela primeira vez. E, para nossa angústia, a cada dia tínhamos que aprender como descrever esses novos sujeitos da rua e seus gestos – “vândalos”, “baderneiros” ou “mascarados” foram alguns dos termos que passaram a antecipar o que víamos. Um dos poucos consensos retrospectivos da política do povo nas ruas reconhece protagonismo do Movimento do Passe Livre (MPL): tarifa zero para o transporte público esteve em todos os cantos do País como uma demanda coletiva dos anônimos.
Não tenho dúvidas de que o transporte é essencial para a garantia de direitos fundamentais. Precisamos de transporte para sobreviver nas cidades: não há saúde, educação ou trabalho sem a garantia de como as pessoas vão mover-se da casa pela rua com destino a algum lugar. Transporte é ônibus, trem, metrô, bicicleta, carro ou qualquer outro instrumento que nos movimente no espaço. Mas é também mover-se apenas com o corpo – caminhar. Entendo que a agenda do MPL tenha sido a tarifa zero por uma resistência à privatização do transporte público, mas a questão política é mais ampla e delicada do que transporte como mercadoria. Sim, essa é uma agenda prioritária, pois enfrenta a ordem econômica que transforma proteções às necessidades em negócio lucrativo: transporte é um meio para nossa sobrevivência, por isso o Projeto de Emenda Constitucional de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP) prevê transformá-lo em um direito social para nossa ordem política. Após os dias de povo na rua, o projeto caminha com pressa na Câmara dos Deputados. Falta agora a corrida pelo Senado Federal para ser considerado um novo direito social no País.
Mas transporte não é o mesmo que mobilidade. Mover-se livremente é uma necessidade; o transporte é uma forma de proteção a essa necessidade. A cidade tem barreiras que nem mesmo o passe livre será capaz de transpor – a discriminação é uma delas. Mulheres andam nos vagões cor-de-rosa dos metrôs em busca de segurança, pois somente segregadas pela geografia do medo poderiam transitar para escola, trabalho ou lazer em horários considerados impróprios à solidão feminina na cidade. Gays ou travestis temem as grandes avenidas: é lá que são surrados ou mortos pela homofobia que não suporta vê-los movendo-se livremente pelo espaço público. Não é apenas o transporte que precisa ser livre; a mobilidade deve ser protegida da discriminação aos corpos subalternizados.
O povo da rua falou de transporte como se as necessidades econômicas fossem universais. O passe livre garante o transporte, mas não o direito à mobilidade. Para se mover pela cidade, as mulheres precisam não ter medo da violência. Por isso, as necessidades econômicas são sempre sociais – nossos corpos não são abstrações que demandam as mesmas proteções do Estado. Mulheres, além de transporte, precisam de segurança. E não só para se mover, mas também para permanecer no espaço público sem medo da discriminação. Logo após o movimento do povo nas ruas, duas mulheres foram recolhidas pela polícia por se beijarem em uma praça durante um evento religioso. O dono da praça e guardião da ordem foi o deputado que anunciou como presente de Natal a despedida da liderança da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Se em retrospectiva precisamos reconhecer que os homens já foram os donos da praça, nosso desafio para o futuro é resistir à nova tentativa de posse do espaço público. Nem o capitalismo dos homens nem o patriarcalismo dos corpos poderá impedir a mobilidade como um direito social.
DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB), PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS, GÊNERO
Acesse em pdf: Diversidade em trânsito, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 29/12/2013)