(O Globo) Para os católicos conservadores, que distribuíram réplicas de fetos em garrafinhas na vigília de Copacabana, foi um silêncio comprometedor . Já os progressistas, que marcharam na orla por uma Igreja mais tolerante, preferiram chamar de silêncio libertador. Ao tangenciar assuntos polêmicos, como o aborto, a eutanásia e a união civil entre pessoas do mesmo sexo durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa Francisco faz história sem abrir a boca. Mostrou aos católicos que, ao não condenar e repetir a velha retórica do Vaticano, abre caminho para o debate interno de temas até então considerados tabus.
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Para os que ainda duvidavam do significado do silêncio do Papa, o retorno a Roma acentuou a guinada. Confrontado pelos jornalistas com as denúncias de lobby gay no Vaticano, respondeu com humildade: Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la? . Sobre o aborto, sua resposta estava nas entrelinhas: A Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso. Eu não queria voltar. Não era necessário voltar a isso, como também não era necessário falar sobre outros assuntos .
– Ele não está querendo reiterar posições. Não se afasta da doutrina tradicional, mas evita insistir nela. Ao fazer isso, permite uma reflexão mais ampla. Há um clima novo para o debate. Não há mais medo da autocensura. O silêncio do Papa é libertador – festeja o sociólogo Luiz Alberto Gomes de Souza, diretor do Programa de Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes.
CONSERVADORES INQUIETOS
Ao advertir que a Igreja já disse o que tinha de falar, sem explicar exatamente o que, Francisco inquieta os setores conservadores, cujas lutas encontravam eco nas pregações de João Paulo II e Bento XVI. Ontem mesmo, o site Frates in Unum, um dos mais expressivos dessa corrente no Brasil, lamentava que, às vésperas da legalização da prática do aborto no Brasil , a JMJ tenha feito poucas referências a este crime abominável, que brada ao céu e clama a Deus por vingança .
Os conservadores, que se juntam aos evangélicos na resistência cristã aos projetos que avançam na legalização do aborto, não escondem a frustração por não ter ouvido de Francisco uma condenação enfática, da boca do Santo Padre, o pedido de proteção à ´vida, que é dom de Deus, um valor que deve ser sempre tutelado e promovido´. E até agora foi só. Nenhuma outra palavra mais contundente que poderia mudar o triste cenário em nosso país . E arrematam: A esperança de um pronunciamento de última hora foi vã .
– O Papa disse que vivemos num mundo laico, secular. Há liberdade para várias posições. Agora, outra coisa é querer impor uma posição para toda a sociedade – rebate Luiz Alberto.
UM ADVERSÁRIO A MENOS
O movimento gay, sempre reticente com a Igreja, viu nas palavras do Papa um adversário a menos a ser enfrentado no cenário político:
– Ele não chegou a defender a união civil. Mas só em não nos atacar, já é positivo. O Papa separa os católicos das correntes de Marcos Feliciano e Silas Malafaia, que ficam agora isoladas – reflete o presidente da Associação Brasileira de Gays, lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), Carlos Magno Silva Fonseca.
O ex-padre Roberto Francisco Daniel, o padre Beto, excomungado pela Diocese de Bauru depois de defender a união homoafetiva, também festejou as declarações do Papa, mas acha que as esperadas mudanças não chegarão a tempo para livrá-lo da guilhotina, razão pela qual ingressou ontem na Justiça comum, para revogar a punição e voltar a vestir batina.
– A frase do Papa fará a cúpula da igreja parar para discutir. Afinal, foi o sucessor de Pedro usando a palavra gay. Ele não se diz capaz de julgar, mas eu já fui julgado e condenado apenas por defender o que considero um direito. Infelizmente, a posição do Papa não alcançará o meu caso. As mudanças não são rápidas – disse Beto.
APOIO INTERNO
O ex-padre tem razão. Não será fácil para o Papa dar um passo além do silêncio. O teólogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, da PUC-Rio, lembra que a escolha de Francisco na quinta votação do conclave de março, com pelo menos dois terços dos votos dos cardeais, indica que a Igreja não é hostil às mudanças. Os cardeais sabiam das consequências de sua escolha.
Mesmo no rebanho mais jovem, as mudanças deverão encontrar dificuldade. O Instituto Datafolha, ao ouvir 1.279 peregrinos na quinta-feira, em Copacabana, durante a Cerimônia da Acolhida, revelou que a distribuição das garrafinhas com a réplica de fetos na 12ª semana de vida, iniciativa do projeto Pró-Vita para atacar a legalização do aborto, teve boa acolhida. Ainda que a margem de erro da pesquisa seja de três pontos percentuais, para mais ou para menos, apenas 22% disseram que são a favor da liberação do aborto, dentro da lei; e os mesmos 22%, que o Papa deveria ser favorável. Por outro lado, 75% disseram que são contrários; e também 75%, que o Papa deve mesmo ser contra.
Sobre a legalização da união homossexual, 25% são favoráveis; e 21% disseram que o Papa deveria ser a favor; 67% são contrários; e 71% disseram que o Papa deve mesmo ser contra. Isso mostra que o debate está aberto, mas os seus efeitos ainda encontrarão barreiras até chegar às dioceses. É a Igreja Católica de sempre.
Acesse o PDF: Silêncio do papa autoriza debate sobre tabus (O Globo, 30/07/2013)