Trabalhadoras domésticas também enfrentam a dupla jornada, destaca pesquisadora

08 de abril, 2013

Verônica Ferreira, pesquisadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, lembra que a dificuldade de conciliar trabalho remunerado com trabalho doméstico não é exclusividade da classe média. Pelo contrário, as 7 milhões de empregadas domésticas lidam com os mesmo dilemas decorrentes da divisão sexual do trabalho, só que com menos direitos e recursos. Confira entrevista.

(Débora Prado, da Agência Patrícia Galvão) Como a PEC das domésticas repercutirá nas responsabilidades com o cuidado da casa e da família na relação de mulheres e homens que vivem juntos? Na tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo no cotidiano das mulheres brasileiras, conforme a condição apontada na pesquisa “Trabalho remunerado e trabalho doméstico: uma tensão permanente”?

A pesquisa tratou das dificuldades e das tensões que as mulheres brasileiras trabalhadoras enfrentam para poder dar conta dessas duas jornadas do trabalho: o reprodutivo e o remunerado. Ela mostrou uma série de tensões e desafios que marcam essa articulação diante da divisão sexual do trabalho doméstico. E, no Brasil, diante da falta de políticas públicas voltadas ao trabalho reprodutivo – como creches, educação pública integral, restaurantes populares – há um déficit de equipamentos sociais destinados a apoiar a articulação dessas duas esferas de trabalho.

Diante dessa ausência de políticas públicas, uma parcela das mulheres que realizam atividades remuneradas, sobretudo das elites e classes medias, recorreu à contratação de outras mulheres – as empregadas domésticas – para realizarem as tarefas de cuidar. As trabalhadoras domésticas, assim, têm sido fundamentais para garantir a ida de mulheres com um poder aquisitivo maior para o mercado de trabalho.

Mas, as trabalhadoras domésticas elas mesmas fazem também parte do conjunto de mulheres que vivem a tensão permanente para articular o trabalho remunerado e o reprodutivo, e são as que mais sofrem com a falta de aparato social. Para piorar, elas ainda não tinham limitação para a jornada de trabalho realizada fora de casa, chegavam a trabalhar 12, 13 horas na rua e tinham que dar conta das responsabilidades relegadas às mulheres nas suas próprias casas. Ou seja, as empregadas domésticas garantem o suporte para outras mulheres associarem trabalho reprodutivo e remunerado, mas elas mesmas não contam com condições de dar conta dessas duas dimensões da vida.

Então, o primeiro grande impacto da PEC é justamente aliviar um pouco a dupla jornada para as próprias domésticas. Estamos falando de uma categoria de trabalhadoras que é uma das maiores do Brasil – cerca de 7 milhões de empregadas domésticas que são em sua grande maioria mulheres e negras. Com a jornada regulamentada, essas mulheres terão condições melhores para enfrentar o quadro colocado pela divisão sexual do trabalho.

Outro ponto positivo é que a PEC vai exigir que a sociedade repense toda forma de organização social para a divisão do trabalho doméstico. Muitos empregadores só contam com a empregada doméstica mantendo uma situação de exploração e destituição de direitos, e isso não pode acontecer. Então, se uma família não puder garantir todos os direitos, ela vai ter que assumir parte desse trabalho reprodutivo. A partir daí, pode repensar pontos como a necessidade de políticas públicas mais efetivas, de que homens comecem a assumir as responsabilidades domésticas, e que as empresas considerem que esse trabalho existe ao organizar o trabalho remunerado.

A nova regulamentação instaura um debate público sobre a necessidade desse trabalho, quem o faz e como ele tem que ser pensando e reorganizado na nossa sociedade. Nesse sentido, a PEC já teve um resultado fundamental ao instaurar o debate público. Ela toca no coração da organização da divisão sexual do trabalho e mexe com as organizações sociais de classe, gênero e raça no Brasil.

A pesquisa indica que o número de mulheres no mercado de trabalho (+157% com carteira assinada) cresceu mais do que a população feminina (+35% no número de mulheres) entre 1992 e 2012 no Brasil. Que tipo de arranjo esteve por traz dessa inserção no mercado de trabalho? A mulher foi substituída por outra em casa (empregada, mãe, filha, vizinhas)?

Há uma parte da classe media que pode fazer a contratação de uma empregada doméstica como o seu suporte para dar conta dessas duas esferas de trabalho. Mas, a grande maioria das mulheres da classe trabalhadora não pode contar com essa relação de contratação como um suporte para permanecer no mercado de trabalho.

Muitas vezes, essa grande maioria de mulheres tem que se submeter a vínculos precários de trabalho, porque eles permitem que se dê conta do trabalho doméstico, ou contam com o suporte de outras mulheres na família, na vizinhança, entre os próprios filhos. Ou seja, elas enfrentam essa situação a partir de si mesmas e são as que mais necessitam das políticas públicas.

A PEC das domésticas pode de alguma forma contribuir para um maior equilíbrio da divisão sexual do trabalho doméstico?

Acho que sim, como eu disse, ela já contribui em curto prazo com o debate público, porque desnaturaliza o trabalho doméstico e coloca em evidência a existência de um contingente de trabalhadoras que arcam com esse trabalho, muitas vezes sem ter seus direitos garantidos e com uma atividade profissional marcada pela desvalorização.

Na medida em que o trabalho doméstico é reconhecido como trabalho possuidor de direitos, vem à tona que ele é parte da organização social e que precisa ser pensado e reconhecido do ponto de vista tanto das relações familiares como das políticas públicas, como ainda na organização do trabalho remunerado. 

Esse debate já está instaurado e já é uma grande contribuição para a questão da articulação entre trabalho reprodutivo e remunerado no Brasil.

Você mencionou que a população com menor poder aquisitivo é a que mais sente a ausência de políticas públicas. Com a PEC, setores de classe media que têm a necessidade da contratação do trabalhador doméstico, mas alegam falta de capacidade para pagá-los com todos os direitos garantidos pela CLT, podem se engajar mais para exigir políticas públicas?

É uma possibilidade. É possível que esses segmentos se mobilizem pelos equipamentos sociais necessários, para cobrar políticas públicas, que pressionem as empresas onde trabalham para que possam cumprir com a jornada no trabalho remunerado considerando a existência desse outro campo da vida, que é a vida reprodutiva. A classe que é empregadora, assim, vai estar desafiada a pensar e refletir sobre as políticas públicas necessárias e a levar essas questões para o local do trabalho. As mulheres vão ter que exigir no Estado e no interior de suas próprias famílias a partilha das responsabilidades domésticas.

Então, há um impacto no trabalho remunerado que vai ter que ser repensado, mas se isso vai gerar mobilização é mais difícil de prever nesse momento. Esperamos que sim, que essa conquista histórica possa promover mudanças culturais importantes e ampliar a garantia de direitos.

A pesquisa apontou a falta de vagas em creches e melhora no transporte para ir trabalhar como as principais demandas das mulheres para o poder público. Como melhoras nessas duas áreas poderiam contribuir para a redução do ambiente de exaustão das mulheres que trabalham no mercado?

A ampliação e universalização do direito a creche e a melhoria no transporte público são apontadas como demandas fundamentais e são serviços importantes e cruciais para todas as mulheres trabalhadoras. E, realmente, essas são duas políticas que precisam ser ampliadas e garantidas com qualidade.

Ter um espaço educativo, pedagógico e de cuidado para os filhos é fundamental para que as mulheres possam estar no mercado com mais tranqüilidade e para poderem também cuidar de si mesmas, estudar, buscar uma colocação melhor no mercado, etc.

Então, as vagas em creches são essenciais para todas as mulheres e será essencial inclusive para as domésticas, para permitir que agora, com as conquistas dos direitos trabalhistas, elas possam firmar vínculos de trabalho. Muitas mulheres se integram as situações mais precárias para poder dar conta do trabalho doméstico. Optam por trabalhar como diarista para conciliar a atividade remunerada com o cuidado dos filhos, por exemplo.

O transporte também é fundamental. Muitas vezes, as mulheres têm jornadas de trabalho que começam muito cedo e trabalham em lugares distantes de suas residências. A falta de qualidade no transporte público toma mais tempo da mulher nesse ambiente de exaustão: tanto demanda um tempo de deslocamento cada vez maior, diante de toda dificuldade de mobilidade urbana, como também acirra a exaustão, porque usar o transporte público se torna muito cansativo, afeta muito em termos de cansaço.

E no caso do cuidado das mulheres com idosos, essa é uma área esquecida pelo poder público?

Eu acho que essa questão, como parte do conjunto que engloba o trabalho doméstico, tende a ganhar mais visibilidade. Embora esse debate ainda seja muito invisível, ele vem crescendo com o aumento da expectativa de vida. O número de mulheres que trabalham como cuidadoras também está se ampliado. E, se a política pública para as crianças por meio das creches é deficitária, no caso do idoso ela é ainda pior. A PEC, ao trazer a tona o trabalho doméstico na sua totalidade e na sua variedade, também contribui, ao lado de outros fatores, para fortalecer esse debate.

Veja pesquisa na íntegra: Trabalho remunerado e trabalho doméstico –uma tensão permanente

 

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