O que pede a terceira onda feminista?, por Veronica Homsi Consolim

15 de setembro, 2017

O presente artigo constitui-se no quarto e último texto da série sobre a história do feminismo, esse responsável por apresentar a sua 3ª onda. A série é dividida em quatro partes, cuja introdutória foi publicada pelo Justificando sobre um pouco da história de conquistas dos direitos das mulheres e do feminismo, a primeira e a segunda onda feminista.

(Justificando, 15/09/2017 – acesse no site de origem)

A partir da década de 80 do século XX, surge a terceira onda feminista, que perdura até os dias atuais. Nessa fase, o movimento repensa as suas ações e aprofunda discussões já travadas nas gerações anteriores, como o papel e a função da mulher na sociedade.

Como visto, a segunda onda foi responsável pela conquista de diversos direitos para as mulheres. A partir disso, as feministas da terceira onda se focaram na mudança de estereótipos, nos retratos da mídia e na linguagem usada para definir as mulheres.

O objetivo passou a ser o reconhecimento de diversas identidades femininas e o abandono da ideologia do “feminismo vítima”, aplicada ao feminismo da segunda onda, em uma interpretação pós-estruturalista do gênero e da sexualidade.

Em 1994, foi adotada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará” – como resposta à situação de violência contra mulheres existentes na América.

O artigo 1º da Convenção define a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como privado”. Já o artigo 6º prevê que o direito da mulher a uma vida livre de violência inclui, dentre outros, o direito de ser livre de toda forma de discriminação e o direito de ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseadas em conceitos de inferioridade ou subordinação.

Em reconhecimento e valorização da interseccionalidade dos fatores de vulnerabilidade, o tratado internacional prevê que os Estados deverão levar especialmente em conta a situação da mulher vulnerável à violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos. Também será considerada sujeitada à violência a gestante, deficiente, menor, idosa ou a em situação sócio-econômica desfavorável, além da afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade.

No Brasil, a senhora Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica por trinta e dois anos pelo seu ex-marido, tendo sofrido duas tentativas de homicídio e se tornado paraplégica, denunciou o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, por não dispor o país de mecanismos suficientes e eficientes para coibir a prática de violência doméstica contra a mulher.

O Estado brasileiro foi responsabilizado pela Comissão por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres.

O relatório final enviado ao Estado brasileiro descreve particularmente a necessidade de uma reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.

Em resposta à recomendação, o Estado brasileiro editou, em 2006, a Lei n. 11.340 (“Lei Maria da Penha”), tipificando a violência doméstica como uma das formas de violação dos direitos humanos e elencando, dentre outras formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

A lei também altera o Código Penal, incluindo como circunstância agravante genérica da pena o cometimento do crime com violência contra a mulher na forma da lei específica, e o Código de Processo Penal, a fim de possibilitar que agressores tenham sua prisão preventiva decretada quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher e para garantir as medidas protetivas de urgência.

A legislação prevê, ainda, inéditas medidas de proteção para a mulher que corre risco de vida, como o afastamento do agressor do domicílio conjunto e a proibição de sua aproximação física junto à mulher agredida e aos filhos.

Em 2015, entrou em vigor no Brasil a Lei 13.104, que alterou o Código Penal para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. De acordo com a novel legislação, o homicídio qualificado por feminicídio ocorrerá em duas hipóteses: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher

Apesar das reivindicações, luta e discurso, da conquista da igualdade formal no mundo ocidental e do avanço da igualdade material entre homens e mulheres, o patriarcalismo e o machismo continuam enraizados na estrutura social em todo o planeta. A mulher ainda sofre de falta de valorização social, econômica, política e identitária.

Exemplo disso são as mutilações realizadas nas mulheres em alguns países da África, com a supressão do clitóris; a censura às mulheres em países islâmicos, onde elas são proibidas, dentre outras opressões, de exibir o rosto; a subjugação das mulheres como escravas e prostitutas em regiões da Ásia; a lástima das mulheres como filhas únicas por familiares chineses (10).

O salário dos homens chega a ser 62,5% maior que o das mulheres. O Brasil, cujo eleitorado é formado por 52% (cinquenta e dois por cento) de mulheres, ocupa a 141ª colocação do ranking da ONU que avalia a participação de mulheres na política, num universo de 188 países.

Contabiliza-se que uma mulher morre a cada hora no Brasil. Quase metade desses homicídios são dolosos praticados em violência doméstica ou familiar por meio do uso de armas de fogo, números que coloca o país em 5º lugar no ranking mundial nesse tipo de crime.

A mídia e a moda expõem as mulheres às ditaduras da beleza e de padrões estéticos, o que se reflete em transtornos alimentares como a anorexia e a bulimia, cujas incidências são 90% (noventa por cento) maiores entre as mulheres. Atualmente, a beleza tem mais valor de mercado do que a inteligência.

Em muitos centros de acolhida para moradores de rua da cidade de São Paulo, as mulheres são responsáveis pelas limpeza e faxina dos locais de acolhimento feminino, enquanto que nos equipamentos destinados aos homens, esses serviços costumam ser terceirizados, em uma institucionalização da dupla jornada de trabalho externo e doméstico da mulher.

Nas unidades prisionais masculinas, o direito à visita íntima é regra, enquanto que nos presídios femininos esse direito é vedado ou não costuma ser exercido, em uma negação clara pelo Estado, ou pela sociedade, dos direitos sexuais da mulher.

Em 2016, foi desenvolvido o anticoncepcional masculino, mas o seu lançamento no mercado foi adiado em razão de o método apresentar reações semelhantes ao feminino, mas que o corpo do homem, diferente do da mulher, não poderia suportar.

As meninas pobres têm menos chances de um futuro digno em comparação aos meninos, pois costumam abandonar os estudos para se dedicarem às tarefas domésticas, são forçadas a se casar, têm risco de gravidezes precoces e, ainda, são as principais vítimas de abusos e violência sexual.

Diante de todo o exposto, a conclusão que se sobressai diz respeito à importância de se aprender sobre as vida e luta de mulheres antepassadas, como forma de reconhecimento da estrutura social na qual estamos inseridos e como instrumento no avanço da conquista de direitos.

A história foi escrita majoritariamente por homens, a partir de suas experiências e seus pontos de vista. Enfocar na vivência e na visão das mulheres, fora dos papéis estereotipados que geralmente carregam, é parte da constituição de valor do que pode ser considerado historicamente digno.

Veronica Homsi Consolim é analista jurídico da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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