Tarefa de conter essa mancha é enorme. Precisa começar na família, já que as crianças aprendem por imitação
(El País, 05/09/2016 – acesse no site de origem)
Temos cifras escandalizantes de maus tratos e assassinatos contra mulheres. Damos muita ênfase às leis e, tenho a sensação, ignoramos a questão educativa na infância, a origem de todas as personalidades adultas. De que servem leis exemplares quando a mulher já está morta? De que servem condenações exemplares se o machismo continua correndo solto?
A educação falha porque há muitíssimas coisas que deixamos de lado e não levamos suficientemente a sério. E aí os pais, quando precisamos educar, temos muito a fazer, porque a responsabilidade é enorme. Um homem não nasce estuprador e nem machista. Ele aprende por imitação, principalmente em casa. E tanto da mãe como do pai.
Sou mãe de duas meninas pequenas. Minha tarefa com relação a elas consiste basicamente em que cresçam felizes, sadias mental e fisicamente e com critério, com capacidade para tomar suas próprias decisões quando forem adultas. É uma das bases da liberdade: saber escolher e assumir os erros caso existam. O problema é que aprender a tomar decisões não se improvisa, aprende-se praticando. Para trabalhar esse critério, preciso deixá-las escolher, mesmo quando é imensamente mais cômodo escolher por elas. Deixar que as crianças comecem a tomar decisões é importante para formá-las com critério. E eu gostaria de deixar claro (hoje em dia é preciso sempre explicar tudo) que não deixo que subam na janela para que saibam o que se sente se caírem no vazio, mas permito, isso sim, que tomem outras pequenas decisões no dia a dia. Como escolher sua roupa, escolher entre descer para brincar no jardim ou ficar em casa brincando e desenhando, deixando que escolham quais atividades extraescolares querem fazer e, inclusive, dentro de um menu equilibrado, em muitos dias lhes dou a oportunidade de decidir entre dois pratos para o jantar. Acredito que fomentar a capacidade de escolha nas crianças fará delas adolescentes e adultos muito mais assertivos quando alguém os agredir ou interferir em seus sentimentos. Aprender a decidir também significa aprender a dizer não.
Claro que não basta que alguns pais façamos isso. Os outros também precisam fazê-lo. Recordo um dia em que a mais velha estava num aniversário. Um menino da classe dela (convencido de que ela tem que ser sua namorada, sendo que ela não tem o mínimo interesse por ele) a estava importunando para que o beijasse. Ela se negava. O menino, persistente, quando viu que não conseguiria por bem, decidiu ir para o tudo ou nada e a agarrou para lhe plantar um sonoro beijo na bochecha. Eu observava de longe, sem querer intervir, queria saber que recursos ela teria. Finalmente, minha filha veio para mim chorando e dizendo que esse menino tinha lhe “quebrado o pescoço” (essa era a maneira de expressar o machucado que sofrera). Em seguida intervimos as duas mães e, para minha surpresa, a mãe do menino explicou à minha filha que o filho dela havia feito isso por “gostar muito de você”. Fui covarde e não chamei a mãe a sós depois do incidente para lhe explicar que quando uma pessoa diz não é não. Tanto faz para mim que seja uma mulher ou um homem. E que gostar muito não dá à pessoa o direito de beijar a outra. Na verdade, não dá direito a nada.
Fui embora do aniversário muito inquieta. Por um lado, estava horrorizada, e por outro sentia uma espécie de medo de ser uma exagerada. E isto me acontece porque ainda persiste na sociedade a ideia de que muitas de nós dramatizamos atitudes que são, aparentemente, “normais”.
É claro que as leis têm de ser as que sempre garantem os interesses dos cidadãos, mas, por que não focamos de verdade na origem? Todos somos o resultado de nossa educação. E, quando falo de educação, me refiro à família, não à escola (que é educação e também importa). Se não banimos frases e crenças pela raiz, nunca vamos acabar com o machismo. Pais e mães devem trabalhar tanto com os meninos quanto com as meninas. O machismo também ocorre entre as mulheres, e de uma maneira ainda mais ofensiva, se possível.
Chegaram a ler os comentários nas redes sociais sobre o desaparecimento de Diana Quer? Ou os comentários feitos após o estupro de Pamplona? Muitos focam em culpar a vítima, em vez do agressor. Em torná-la responsável pelo ocorrido: quem é que se envolve estranhos; que é preciso ver se havia bebido ou não; que sabe lá Deus se é verdade, porque (este é o pior e há um artigo circulando por aí) “quando as garotas de Navarra ou bascas te dizem sim, tenha cuidado porque, quando voltam a ficar sóbrias, então percebem o que fizeram e denunciam você por estupro”; veja como estava vestida, por isso não me admiro que a estuprem; se na verdade estava buscando confusão… Que educação receberam os que pensam assim?
A educação é um caminho longo, às vezes difícil, mas sempre tem que estar na mesma linha. Se estamos horrorizados com o machismo, não podemos continuar educando as crianças com estereótipos como os “meninos não choram; isso é para maricas; para ser bonita tem que sofrer; que esse esporte é de meninos; bonecas são para meninas”… A lista é interminável. Isso na infância, mas na adolescência o discurso tampouco muda. Por acaso não é uma frase das mães a de que você precisa se dar ao respeito, e por isso não pode ir para a cama com um garoto no primeiro encontro? Sempre vi algo de perverso nesse discurso. Porque, o que se busca com esse conselho não é um respeito emocional, e sim de pureza, de virgindade, como se uma mulher que já não seja virgem não possa ser levada a sério. Busca-se uma ilusão: até que não me ponha o anel ou não me ofereça garantias, não te dou meu corpo. Parece uma manipulação da sexualidade. Só ofereço meu corpo em troca de algo. Gostaria que as jovens percebessem outras coisas mais importantes, como exigir o respeito de suas emoções e corpos, mas por outras razões que não têm nada a ver com essa ideia de “mulher que já está usada”.
A tarefa educativa para frear este flagelo do machismo é enorme. E, ou começamos a trabalhar sério, ou continuaremos lamentando muitas mortes a cada ano.