Mulheres e negros ainda não se veem no debate eleitoral

01 de outubro, 2014

(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 29/09/2014) Na semana do primeiro turno das eleições, a Agência Patrícia Galvão publica a terceira matéria sobre a ausência de discussão acerca das demandas das mulheres e negros nos programas e debates das candidaturas à Presidência. Embora representem 52% do eleitorado, ao longo do processo eleitoral têm sido raros os momentos em que esses dois segmentos majoritários da população brasileira têm suas necessidades abordadas nos debates entre as candidaturas. Os veículos de mídia também, de maneira geral, mal tocam no assunto e quando o fazem isso ocorre de modo fragmentado e descontextualizado.

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As mulheres ainda são o segmento populacional com maior índice de indefinição do voto, mantendo um comportamento que a especialista em pesquisas de opinião Fátima Pacheco Jordão analisa como resultado do alheamento das campanhas e da cobertura midiática em relação aos temas que mais interessam a elas. As pesquisas eleitorais realizadas neste ano também apontam um distanciamento maior da população negra em relação ao pleito, que é analisado por Fátima e outros especialistas como resultado do mesmo processo de invisibilização das demandas desse grupo, que pela primeira vez é maioria do eleitorado brasileiro.

Conservadorismo também é obstáculo

Integrante da coordenação nacional da Marcha Mundial de Mulheres, Sônia Coelho aponta a ausência de debate programático e o conservadorismo como principais explicações para a ausência dos temas de interesse das mulheres no debate eleitoral. “E quando chega às questões das mulheres é um problema ainda maior, porque quando se discute é pelo aspecto moral. Por exemplo, no ano passado discutiu-se muito aquele projeto de atendimento às vítimas de violência sexual que a presidenta Dilma sancionou, em todos os meios de comunicação e no Congresso. E hoje já há deputados tentando revogar aquela lei. Esse tipo de coisa deveria vir para a pauta de discussão. A violência sexual está crescendo no Brasil – podemos ver pelos dados do Ipea divulgados no ano passado. Então esse é um grave problema na sociedade, que deveria estar em discussão na eleição”, ressalta.

Principal demanda é por mais e melhores serviços

Pesquisa realizada em 2013 pelo Data Popular, em parceria com o Instituto Patrícia Galvão e o Data Favela, em duas mil comunidades de todo o país, apontou que 55% dos entrevistados afirmaram não ter acesso a hospital público na comunidade, 50% relataram ausência de posto policial na favela e 32% mencionaram a falta de creches públicas. O diretor do Data Popular, Renato Meirelles, destaca ainda que 25% das moradoras em comunidades são mães solteiras e 40% das famílias são chefiadas por mulheres, o que torna mais evidente a demanda por tais serviços, que têm relação direta com um patamar de cidadania efetiva, autonomia econômica e proteção contra a violência urbana.

No quesito segurança, a realidade das favelas se estende às regiões populares das grandes cidades brasileiras, conforme mostram dados levantados pela Campanha “Cidade Segura para as Mulheres”, da ActionAid. O estudo realizado em quatro Estados mostra que 73,9% das entrevistadas já tiveram que mudar de trajeto por falta de iluminação em vias públicas, 70,6% evitam sair de casa em determinado horário por medo de sofrerem algum tipo de violência e 54% das mulheres relataram já ter sofrido algum tipo de assédio por parte de policiais.

Transporte público é o serviço mais mal avaliado em todas as regiões nesta pesquisa, sendo ressaltados pelas mulheres os casos de assédio dentro dos coletivos.
“É isso que não se debate. Só se discute como se ter mais polícia na rua resolvesse o problema. A forma como se fazem os debates eleitorais é muito fragmentada, simplificada, com soluções “mágicas” que são absolutamente falsas para os problemas que a gente tem na sociedade. Não se discute com profundidade os problemas, e os das mulheres menos ainda. As mulheres, apesar de serem hoje 43% da força de trabalho, assumem também o trabalho doméstico. E como a sociedade discute essa sobrecarga sobre elas? Como o país vai enfrentar isso? São necessárias políticas como as de socialização do trabalho doméstico, mas isso não aparece”, critica Sônia.

Autonomia e direitos sexuais e reprodutivos

Se o debate de políticas públicas já consolidadas como direitos é parco na cena eleitoral, quando se trata de saúde sexual e reprodutiva a invisibilidade dos direitos das mulheres é potencializada. “Vimos como logo no início da campanha o debate sobre o aborto foi interditado pela postura da mídia de colocar a discussão no plano do ‘fulano é a favor, beltrano é contra’. Não nos interessa a opinião pessoal dos candidatos e candidatas, mas quais são as políticas que pretendem implementar para dar conta de um problema muito grave que temos no país, que é o aborto clandestino, que afeta principalmente as mulheres pobres e negras. O tema da mortalidade materna, em relação ao qual o Brasil ainda não conseguiu atingir a meta do milênio, tem como parte das estatísticas os abortos clandestinos. É um debate que precisa ser enfrentado e que outros países, como o Uruguai, estão enfrentando. Mas no Brasil é proibido falar. Trabalha-se com a chantagem dos conservadores evangélicos, católicos e da própria mídia, que faz um debate totalmente equivocado”, diz a coordenadora da Marcha.

Ao longo do último ano, apenas após as mortes de duas mulheres relacionadas a procedimentos clandestinos de interrupção de gravidez, alguns veículos vêm dedicando espaço ao debate sobre o aborto como questão de saúde pública e autonomia feminina.
“Sempre falamos que é importante discutir o crescimento econômico e qualquer governo tem que ter essa preocupação, mas o crescimento por si só não garante igualdade. Então temos que discutir planos que gerem crescimento e também igualdade, mas isso não está colocado. Discute-se o problema das grandes minorias ricas (latifundiários, empresários, usineiros, indústria automobilística), mas os problemas de cento e tantos milhões de mulheres não aparecem”, aponta Sônia.

A invisibilidade da maioria negra

Especificamente em relação à população negra, que deve somar 55% do eleitorado neste ano, o desinteresse pelas eleições vem caindo, mas ainda está em 47% de acordo com o último levantamento feito pelo Ibope. Para a jornalista e coordenadora do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento, Angélica Basthi, há fatores variados para essa realidade, entre eles os sucessivos escândalos de corrupção e a percepção de impunidade que repercute na população. “Mas creio que o distanciamento dos problemas que afetam a população negra é a principal justificativa. Os homens e mulheres negros não se veem representados. Depois do resultado da pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, despertou um certo interesse de alguns presidenciáveis em apresentar propostas para a população negra. Mas, na minha opinião, faz parte de um jogo que não nos interessa”, afirma.

O papel social da mídia

Debater a relação entre políticas públicas e direitos das mulheres e da população negra é tarefa também da mídia – especialmente as emissoras de rádio e TV, que são concessões públicas. Para Angélica, que também é mestra em Comunicação e Cultura pela UFRJ, “o papel da mídia é estratégico no sentido de contribuir para a consciência crítica e formação do cidadão brasileiro. As TVs e rádios, como concessões públicas, têm o dever de oferecer visibilidade aos temas e problemas que afetam as populações respeitando a sua diversidade, e isso inclui as mulheres e a população negra, e em especial, as mulheres negras”. E a jornalista alerta: “O poder que a mídia exerce como espaço de intervenção pública já faz dela um instrumento crucial para o fortalecimento da democracia. E só existirá democracia plena com o incentivo à pluralidade de vozes, equilíbrio de fontes com recorte de gênero e raça e distanciamento do jornalismo de baixo escalão, ou seja, a proximidade com o jornalismo mais investigativo na produção de conteúdos midiáticos”.

No entanto, verifica-se um distanciamento grande entre a demanda existente e a cobertura eleitoral. “A cobertura jornalística tem sido pautada pelos lugares comuns do ponto de vista temático, com pouca criatividade e ousadia. A linguagem, em alguns momentos, tem sido a do confronto, mas até agora não se conseguiu escapar do velho jogo político e, portanto, dos interesses ocultos. Outro ponto que contribui negativamente é a exploração de grandes temas pautados por escândalos que mobilizam jornalistas e audiências. Esse jogo de interesses não deixa espaço para debates refinados nem para pautas mais plurais. Falta ousadia e proximidade com os temas que de fato contribuem para a consolidação da democracia brasileira”, avalia a especialista.

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