Professores contam como estupro é debatido em sala de aula

01 de junho, 2016

(G1, 01/06/2016) Temas como gênero e violência sexual ganham espaço no ambiente escolar. Caso de estupro coletivo no RJ trouxe questões à tona.

O estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro contra uma adolescente de 16 anos, em 21 de maio, reacendeu a discussão sobre a violência sexual contra a mulher. Temas como gênero, machismo e questões culturais e comportamentais da sociedade foram levados para as salas de aula.

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O G1 ouviu oito professores, de português, história e biologia, para saber o que eles pensam a respeito e como trabalham essas questões nas escolas.

A mulher na literatura

Flávia Aparecida da Silva leciona língua portuguesa no ensino estadual e municipal de Itumbiara, no interior de Goiás. Ela acredita que são iniciativas individuais dos professores que podem suscitar reflexões e debates sobre a cultura do estupro em sala de aula. “Quando o assunto surge, não vejo como perda de tempo. É uma discussão social, ética, moral. A escola precisa abraçar essas questões, sim. Piadas sexistas, por exemplo, já motivam uma conversa”, diz. “Minhas alunas se interessaram pelo que ocorreu no Rio de Janeiro. Elas têm de 15 a 17 anos, vivem em uma cidade em que casos como esse são abafados”, diz.

Quanto ao conteúdo da disciplina, Flávia analisa com seus alunos obras da literatura brasileira para entender a forma como a mulher é vista em diferentes épocas. “Já discuti com eles sobre as personagens de José de Alencar, em Senhora, Diva e Lucíola, mostro qual o papel delas no século XIX e comparo com nossos tempos atuais”, diz.

Trote feminista

Larissa Vieira, professora de biologia de uma escola estadual na zona oeste de São Paulo, já fez intervenções em sala de aula depois de vivenciar casos de assédio. “Meninos comentaram comigo do meu corpo. E devem ter feito o mesmo com outras alunas. Parei a aula, fiz a discussão sobre o fato de a mulher poder usar a roupa que ela quiser e ser respeitada”, conta. No Dia da Mulher, a escola organizou um “trote feminista”: meninas levaram cartazes em que pediam para ser respeitadas. “Aproveitamos esse material para discutir o assunto, várias meninas se abriram”, completa.

Comentários feitos durante as aulas também motivam o debate sobre o respeito à mulher. Larissa já ouviu frases como “respeita porque ela tem namorado” ou “respeita porque ela é professora”. “Intervi e falei: é ‘respeita porque é mulher”, diz. Nesta semana, ela estava dando aula sobre reprodução sexuada. Um dos alunos comentou: “é a menina do Rio?”. “Expliquei que o caso está sendo investigado, que a menina estava desacordada”, conta. Para relacionar à biologia, Larissa irá abordar os temas de castração química, natureza do homem e produção de testosterona, para desmistificar questões como “homem não se aguenta”.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade

A professora de história Lícia Mascarenhas afirma sempre relacionar as questões de gênero com a disciplina em suas aulas na turma do 2º ano do ensino médio do Colégio Estadual Maria Pereira das Neves, em Niterói (RJ), e do 8º ano do Colégio Municipal Irene Barbosa Ornellas, em São Gonçalo (RJ). Ela usa como motivação datas como o Dia Internacional da Mulher e o Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças para retomar personagens históricas, exibir filmes e realizar debates entre os alunos.

Partindo do gancho da Revolução Francesa, que tem o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, Lícia retomou o debate após a notícia do estupro coletivo. “Peguei o lema como exemplo. Questionei até onde vai a liberdade das pessoas, se existe igualdade de gênero, falei sobre a cultura do estupro da qual os alunos nunca tinham ouvido falar”.

Segundo Lícia, a melhor forma de debater com os alunos é deixar eles exporem seus pensamentos e depois discuti-los. “O momento trouxe à tona a discussão. Os alunos ficam mobilizados. Mesmo no caso dos alunos que têm visões em que acreditam que a menina se colocou naquela situação, o fato de discutir já é importante. É importante demais que isso seja feito através de filmes, perguntas, textos, da maneira que for”.

Professor defende papel na formação integral dos alunos (Foto: Ardilhes Moreira/G1)

Professor defende papel na formação integral dos alunos (Foto: Ardilhes Moreira/G1)

‘Papo controverso’

Miguel Malheiros é professor de história do 2º ciclo do ensino fundamental, na escola municipal Professor Souza Carneiro, no bairro Penha Circular, no Rio de Janeiro. Ele conta que havia planejado a aula para abordar a Segunda Guerra Mundial e a crise econômica, mas mudou os planos. “Tive uma conversa sobre gênero. A intenção é comprar a briga contra a campanha que existe de culpabilizar a vítima. O crime de estupro é o único em que a sociedade discute que ocorreu porque a vítima mereceu. Este pensamento é um retrocesso”, afirma.

“A vontade de nós, homens, que somos aliados na luta contra machismo, é de pedir desculpas pelo o que aconteceu. É possível e necessário levar essa discussão para a escola. Além de professores, somos educadores”, completa.

A escola funciona em tempo integral e uma das atividades extracurriculares oferecidas é uma aula chamada “Papo controverso”, em que se discutem questões sobre gênero, machismo, xenofobia e homofobia. Houve tanta procura pelo módulo que a escola vai oferecê-lo também no próximo semestre.

Aborto e senso crítico

O tema é discutido também nas aulas de biologia. O professor Fernando Cologneze Pinheiro, do Colégio Objetivo, em São Paulo, estabelece relação entre o conteúdo da disciplina e temas atuais. “Sempre que termino de ensinar embriologia, discuto a questão do aborto com os alunos. E isso esbarra no feminismo, que acho importante”, conta.

Fernando também reforça aos estudantes que é preciso ter senso crítico para debater. “Não existe o ‘sim, porque sim’, ‘não, porque não’. Quero que eles busquem argumentos. Não é para usarem a biologia como forma de justificar comportamentos machistas”, diz.

Sobre especificamente o tema do aborto, o professor prepara um projeto para abordar o assunto com os alunos. Por enquanto, procura mostrar a eles a importância da empatia. “Me assusta que jovens em idade escolar justifiquem o que aconteceu no Rio de Janeiro. Trabalho com o ‘imagina se fosse você, se olhassem suas fotos no Facebook e fizessem um julgamento’”, relata.

Além da biologia

O professor Mário Sérgio Souza dá aulas de biologia no Colégio Estadual Júlia Kubitschek, no Rio de Janeiro, que trabalha com a formação de professores de creche, pré-escola e classes até o 5º ano. No primeiro dia de aula, propõe um “levantamento de concepções prévias” a seus alunos recém-saídos do ensino fundamental para descobrir o que pensam sobre determinadas questões, como violência de gênero e aborto. “A partir do levantamento, trabalho questões específicas. A questão do machismo pode ser mais forte em uma turma, a identidade de gênero pode aparecer com mais frequência em outra”, diz.

Segundo ele, relacionar os assuntos com a disciplina não é complicado. “A biologia é a própria vida. O ser vivo envolve uma série de questões sociais, psicológicas, que vão além da biologia tradicional. Trabalho o currículo oficial e também a formação humanística”, afirma.

Para Souza, é fundamental entrelaçar os temas com a disciplina, uma vez que ele trabalha com pessoas que lidarão com crianças mais tarde. “Se você não tem um profissional de educação com uma cabeça bem trabalhada para essas questões, que tipo de educação vai passar para essas crianças?”.

Biografias das funcionárias da escola

Em Iturama, interior de Minas Gerais, a professora Cristiane Machado também ensina língua portuguesa e desenvolve um projeto sobre o empoderamento feminino: Mulheres que Brilham. Os alunos escreveram minibiografias de todas as funcionárias mulheres da Escola Estadual M. S. de Lourdes. “Eles descreveram a importância de todas, da moça da portaria até a diretora”, conta. No encerramento do ano passado, Cristiane organizou um sarau, com música e poesia relacionadas à mulher antiga e contemporânea.

“Em uma cidade de 40 mil habitantes, cresci ouvindo que mulher não podia sair porque ia ficar falada. Que homens é que precisariam ‘pegar’ todas. A escola está tentando discutir isso, mas também precisamos de uma mudança nas famílias ”, conta.

Laura Lewer, Luiza Tenente e Vanessa Fajardo

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