(Folha de S. Paulo, 10/03/2016) Volta e meia, algumas meninas e mulheres vêm até mim tentando esclarecer uma insegurança a respeito do uso da palavra feminismo. Percebo nelas a identificação com o significado, mas também um medo de sair do armário e se dizer feminista. “Eu concordo com isso, mas tenho medo de usar esse termo pois acho que vou ser mal-interpretada”. Entendo esse receio, eu também já me senti assim. Eu queria ser a cool, a descolada, a que não reclama. Para agradar ao pensamento comum e me dissociar do estereótipo feminino que nada mais é do que construção social: ela é cheia de mimimi, ela curte uma DR, mulher é assim mesmo histérica. Elas são todas loucas. A acusação de vitimismo. Quantas vezes nos disseram isso desde pequenas? Crescer ouvindo essas coisas faz com que elas se entranhem em nós; e na tentativa de ser fortes e fugir desse lugar-comum acabamos renegando nossa voz e nossas necessidades. Mas, se a gente parar pra pensar, vai perceber que esse é um conceito concebido dentro de uma cultura patriarcal cujo propósito é nos deixar mudas, e esse é o status quo que todas nós absorvemos desde que nascemos.
Por isso considero urgente que, juntas, nos empenhemos em desconstruir esse receio e quebrar esse ciclo. Nada melhor que o diálogo para esclarecer certos pontos. Há muita desinformação e conceitos distorcidos a respeito do assunto, e acho que isso se deve parte pela má-fé de gente disposta a desmerecer essa luta e parte por causa da própria natureza do feminismo: ele é livre, plural, não tem cartilha, e está em constante construção. É por isso também que prefiro dizer “meu feminismo” ao invés de ceder ao absolutismo do artigo definido diante dessa palavra. Pois bem, existem muitas linhas de pensamento e ação dentro do feminismo; e conversando, lendo e se informando cada uma encontra o seu. Hoje, me identifico com o feminismo interseccional porque reconheço que as mulheres são diferentes e enfrentam situações distintas de acordo com raça, etnia, classe social, condição física, orientação sexual. Para mim, é preciso olhar para cada caso de forma específica e entender as diversas camadas de opressão que podem ir-se somando e agravando o grau de vulnerabilidade de cada uma.
Com todas essas variáveis, existem alguns pontos meio que universais começando pelo básico: definição. De forma bem simples: feminismo é um movimento político, filosófico e social que defende a igualdade de direitos entre mulheres e homens.
(O termo equidade pra mim cabe melhor em diversos aspectos dessa questão, mas isso é assunto pra outro texto)
Então, para as meninas e mulheres que têm vontade mas ainda se sentem inseguras em se dizer feministas, vai o meu apoio: não deixe ninguém te assustar com ideias tortas. Não se intimide com a falácia de que feministas odeiam homens, querem subjugá-los, não podem ser femininas, não gostam de elogios (cantada é outra coisa, tá?), não devem casar ou ter filhos, ou tantas outras velhas bobagens que – gente, 2016! – ainda circulam por aí. O feminismo luta para que justamente você possa o que quiser em relação a seu corpo, suas relações afetivas, sociais e profissionais. O resto é baboseira pejorativa disseminada com o intuito de ridicularizar a luta (e essa tática é velha…); e principalmente de nos desunir e desestabilizar. Não caia na armadilha dessas frases feitas que criaram pra te fazer acreditar que o feminismo é o equivalente do machismo para a mulher. “Não sou feminista nem machista; sou humanista”, e outras desinformações tais. O machismo oprime. O feminismo liberta. Em lugar algum, em tempo algum, um sistema de dominação e uma luta por direitos iguais podem ser equivalentes.
Gosto de frisar o “para as que têm vontade”, porque ninguém é obrigada. Cada uma tem seu tempo, sua circunstância, sua vivência. E, ao conversar com uma tia minha feminista há mais tempo, ela chamou atenção para uma coisa importante: “Quando leio um texto como o teu, penso nas meninas do sertão da Bahia por exemplo, que sentem o que você escreve , mas não têm onde se ancorar para manifestar e viver o feminismo. Penso que talvez seja importante sugerir que essas meninas saiam do armário em grupo. Que se unam a outras que pensam como elas e que usem uma estratégia para enfrentar o que virá depois. Que leiam, estudem, conversem com a mãe, a tia, a professora, a avó, o pai, o tio gay… que busquem pessoas próximas a elas que se identifiquem com o que as feministas defendem e criem em torno delas uma rede de proteção . O machismo mata, estupra, desemprega, persegue e torna inviável a vida das mulheres. Penso que proteger uma as outras é a causa mais importante do feminismo hoje.”
Vamos conversar mais, nos informar, nos juntar. A cada troca de ideias, vamos nos aprofundando e ajudando a ressignificar o feminismo para todas de nós que foram bombardeadas a vida inteira com uma ideia depreciativa sobre lutar por equidade de gênero. Para tantas de nós que foram humilhadas ou temeram por sua integridade física quando “ousaram” manifestar uma ideia, um desejo, uma frustração; através dos séculos e até hoje. E para as milhares que de fato sofreram essa violência na pele. Até que a cada dia, mais e mais mulheres se sintam seguras o suficiente para, caso queiram, dizer com orgulho e embasamento: sim, eu sou feminista.
TMJ! bjs, P.
Pitty é cantora, compositora, escrevedora, instrumentista e feminista
Acesse o PDF: The F Word, por Pitty (Folha de S. Paulo, 10/03/2016)