Carta de Einstein a Marie Curie reacende debate sobre sexismo nas ciências

13 de dezembro, 2014

(O Globo, 13/12/2014) Até hoje, ela foi a única a ganhar dois Prêmios Nobel em categorias científicas distintas — Física e Química. Foi uma das precursoras dos estudos da radioatividade e a descobridora dos elementos químicos rádio e polônio. Sob qualquer parâmetro técnico, a polonesa Marie Curie (1867-1934) pode ser considerada uma das maiores cientistas de todos os tempos. Mas isso não foi suficiente para livrá-la de ser alvo de preconceitos machistas. Uma carta escrita por Albert Einstein à colega, em 1911, cujo conteúdo só veio à tona agora, traz conselhos para que ela não sucumba às fofocas e maledicências sobre sua vida pessoal.

“Se essa ralé continuar a se ocupar da sua vida, simplesmente pare de ler essas bobagens; deixe-as para os répteis que as criaram”, escreveu Einstein, na época com 32 anos, na carta datada de 23 de novembro de 1911. Marie Curie tinha 38 anos na época e já era viúva do físico Pierre Curie (que dividiu com ela o Nobel de Física em 1903), com quem teve duas filhas.

Como primeira mulher a ganhar um Nobel e professora de Física da Sorbonne, ela pleiteava uma vaga na Academia de Ciências da França. Seus adversários, no entanto, questionavam a entrada de uma mulher na tradicional academia e começaram a espalhar o boato de que ela era judia e, por isso, não poderia se candidatar a uma vaga na instituição, como registra o Instituto Americano de Física.

NAMORO COM ALUNO DO MARIDO

O jornal direitista “Excelsior” atacava diretamente a sua candidatura, questionando em suas manchetes: “Uma mulher vai entrar no instituto?” Em meio à fofocada na imprensa, Curie viajou a Bruxelas para participar de uma conferência internacional de física. Neste evento, em que era a única mulher presente, ela foi apresentada a Albert Einstein.

De volta a Paris, mais fofocas esperavam por ela. Desta vez, sobre sua relação com o físico Paul Langevin, que havia sido aluno de Pierre Curie. Embora já não vivesse mais com a mulher, Langevin ainda era casado oficialmente. A imprensa francesa teve acesso a cartas de amor trocadas entre os dois (aparentemente a ex-mulher de Langevin as mandou aos jornais) e apressou-se em chamar Marie Curie de “destruidora de lares”. Uma multidão foi para a porta da casa dela, aterrorizando suas filhas Irene, de 14 anos, e Eve, de 7 anos. O tumulto foi tanto que as três tiveram que passar uns dias na casa de uma amiga, até que a poeira baixasse. Naquele mesmo ano, Curie receberia o segundo Nobel, desta vez de Química, mas apenas a sua vida pessoal interessava à imprensa.

Na carta enviada à colega, Einstein escreveu: “Sinto-me compelido a lhe dizer o quanto admiro seu intelecto, seu ímpeto e sua honestidade. Considero-me um homem de sorte por tê-la conhecido pessoalmente em Bruxelas.” O físico prossegue, desta vez se referindo diretamente aos escândalos: “Não ria de mim por estar lhe escrevendo sem ter nada muito sábio a dizer. Mas estou tão indignado com a forma pela qual você está sendo tratada publicamente, que preciso dar vazão a este sentimento.” Ele faz ainda uma referência direta ao relacionamento dela com Langevin e os descreve como “pessoas reais com as quais é um privilégio manter contato”.

A carta foi encontrada por acaso pelo astrônomo David Grinspoon num arquivo de textos pessoais e correspondência de Einstein, recentemente aberto para pesquisas pela Universidade de Princeton. Ele fazia pesquisas para um livro que está escrevendo sobre o antropoceno — nome pelo qual os cientistas se referem ao atual período, em que o homem se tornou uma força tão potente que está provocando alterações geológicas no planeta. Grinspoon buscava considerações de Einstein sobre as armas de destruição em massa e como o desenvolvimento mudou o mundo.

— Foi pura sorte — contou ele, em entrevista por e-mail. — No momento em que li, percebi que tinha descoberto algo especial; a linguagem era tão pessoal, tão apaixonada, tão humana, e, ao mesmo tempo, entremeada de humor e perspicácia. E me pareceu muito relevante para os problemas que muitas mulheres cientistas enfrentam hoje, quando tanta gente continua focando críticas em seus relacionamentos pessoais, suas roupas ou em qualquer outra coisa que não seja seu trabalho científico.

A pesquisadora Betina Lima, do programa Mulher e Ciência do CNPq, concordou com o colega:

— O discurso oficial é de que não existe preconceito, de que, com mérito, todo mundo pode chegar lá — afirmou ela, que se dedicou a estudar, especificamente, a situação das mulheres na física. — Mas a verdade é que as dificuldades são maiores para as mulheres. A fofoca e o falatório sobre a vida pessoal, por exemplo, é algo naturalizado. A questão das roupas também é recorrente, o que leva muitas mulheres a lutar para passar despercebidas, para não serem assediadas. A desvalorização do trabalho em relação ao dos homens é frequente. E quando elas trabalham em parceira com os maridos, por exemplo, tendem a sempre dar o crédito do trabalho para eles. O que, felizmente, não foi o caso de Marie Curie.

Astrônoma do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa, Duília de Mello diz que o preconceito persiste, mesmo em locais de ponta.

— Um caso claro de sexismo é o preconceito na hora de contratar profissionais — contou. — Tem até um estudo sobre isso, que mostra como o mesmo currículo inventado, enviado em nome de uma mulher e de um homem, foi recebido e avaliado de forma totalmente diferente. O homem acabou recebendo ofertas de trabalho, a mulher não. Outra coisa: as mulheres cientistas ainda ganham menos que o homem em muitos locais.

Segundo Grinspoon, a internet e as mídias sociais criaram um novo e fértil terreno para a discriminação e as críticas covardes, dando ainda mais repercussão a determinados preconceitos. Mas ele vê similaridades nas situações.

— Me dei conta de que, na verdade, Einstein estava aconselhando Curie a ignorar o equivalente à “trolagem” (zoação na internet) do início do século XX, e descrevia, de forma muito vívida, os responsáveis pelas fofocas, que hoje chamamos de ‘trolls’, como “répteis” (não de forma muito justa com os répteis, na verdade…).

Roberta Jansen

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