Cuidado: o desafio de remunerar os trabalhos invisíveis

23 de janeiro, 2025 Outras Palavras Por Gabriel Brito

Pesquisador analisa impactos e limites da nova Política Nacional de Cuidados. Iniciativa pode ter grande impacto social. Mas há brechas a serem preenchidas, como a urgência da ampliação do cuidado domiciliar, com a expansão da população de idosos

O governo Lula encerrou seu segundo ano com a sanção de um projeto que, se for realmente implementado, poderia tocar nas seculares estruturas sociais e trabalhistas do país. Trata-se da Política Nacional de Cuidados (PNC), criada após quase dois anos de discussões entre representantes de 20 ministérios, com o intuito de reconhecer o cuidado em variadas dimensões como uma esfera fundamental da vida social.

“Política Nacional de Cuidados é bastante importante porque, ao contrário dos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional, foi o primeiro a reconhecer o cuidado como trabalho. O grande desafio é tornar o cuidado um trabalho visível e, portanto, remunerável”, resume o economista Jorge Félix, autor do livro Economia da Longevidade e estudioso da economia dos cuidados.

No entanto, como alerta Félix, o pais ainda está longe de criar as condições para a efetivação de uma política de cuidados que altere o atual estado de invisibilidade de milhões de pessoas, em especial mulheres, que acabam tendo anuladas suas vidas social e econômica. Tal contexto se agrava no caso brasileiro, onde persiste uma cultura escravocrata e de superexploração do trabalho.

“A Política Nacional do Cuidado terá impacto semelhante à PEC das domésticas. E embora a gente precise destacar que apenas 25% dos domicílios brasileiros contratam este trabalho, de babá ou cuidadora, vai ter um impacto nessas relações sociais”, explicou.

Nesse sentido, Félix, também pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), onde se desenvolve toda uma linha de pesquisas relativas aos cuidados, alerta que a PNC, ainda que parta das melhores premissas e intenções, está longe de equacionar o problema do reconhecimento desta ocupação como trabalho formal. Sem tergiversações, o grande obstáculo é o modo capitalista de reprodução socioeconômica, que sempre se serviu da exploração do trabalho de cuidado não remunerado.

“Não faz sentido ter uma Política Nacional de Cuidado e não regulamentar a principal profissional que atua nessa área [a cuidadora]. É completamente paradoxal e vai ter de voltar à tona. E não sabemos se o Brasil vai remunerar ou não o cuidador informal, isso é extremamente polêmico. A outra questão é se vai se criar um serviço de cuidado domiciliar, porque essa é a grande necessidade das pessoas de baixa renda, que não conseguem comprar cuidado no mercado.”

Na entrevista, Jorge Félix destaca que se trata de um desafio global, não só brasileiro, mas outros países ao menos já avançaram no reconhecimento do cuidador como um profissional. Quanto ao Brasil, ainda será necessário avançar na criação de um sistema público de cuidados, ou ao menos a preparação do SUS – e também do Sistema Único de Assistência Social – para a absorção desta demanda que ganhará novos contornos com a mudança demográfica da população. Caso contrário, o cuidado será apenas mais um serviço ofertado pelo mercado e adquirido por quem pode pagar. Neste caso, praticamente os mesmos 25% da população que possuem acesso a seguros privados de saúde.

“Qual é o grande desafio e a grande necessidade hoje da população? É o cuidado domiciliar. O SUS não tem como cuidar dessas pessoas, ou hospitalizá-las. O país passa por uma transição epidemiológica, o que trará um aumento das doenças crônicas, que em grande parte não serão hospitalizáveis, eles têm de viver em casa, seja com Alzheimer, com Parkinson, sequelas de AVC. Todas essas condições que aumentam na população se refletirão em mais necessidades de cuidado domiciliar”, contextualiza.

Confira a entrevista:

Como estudioso de profundidade da área de cuidados, sua economia e relações sociais, como avalia a sanção da Política Nacional de Cuidados, após a realização de todo um estudo de preparação que envolveu 20 ministérios?

É muito importante. Antes, tínhamos iniciativas do Legislativo, mas o Executivo nunca tomou a frente. É relevante porque tem o envelhecimento como um dos principais públicos alvo, o que é inédito. A questão sempre esteve muito pulverizada entre muitos ministérios. Vejo um lado positivo e outro negativo. Primeiro, é muito difícil orquestrar tal desafio quando não se tem, como em outros países, uma secretaria ou até um ministério diretamente destinado a tratar de cuidado.

De todo modo, foi um trabalho executado num tempo muito razoável, desde a implantação do grupo de trabalho até a sanção presidencial (um ano e sete meses). É louvável. Em termos do conteúdo, a Política Nacional do Cuidado também é bastante importante porque, ao contrário dos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional, foi o primeiro a reconhecer o cuidado como trabalho. Ao reconhecer o cuidado como um trabalho, tem-se uma série de desdobramentos normativos muito importantes para romper com a lógica histórica, oriunda da escravidão aqui no Brasil, de que o cuidado pode ser não remunerado.

O grande desafio é tornar o cuidado um trabalho visível e, portanto, remunerável. Porque isso está na origem do campo de estudo da economia do cuidado pelas economistas feministas da década de 1960.

Uma política ampla de cuidados não afeta diretamente as relações sociais ditadas pela lógica capitalista? Não estaríamos falando da valorização de atividades não rentáveis, largamente invisibilizadas?

Quando há um cuidado não remunerado, e estamos falando do cuidado doméstico, o cuidado familiar, o cuidado com as crianças, o cuidado com os idosos, obrigatoriamente há uma maior exploração do trabalho porque essas pessoas estão cuidando de alguém que vai ser mão de obra para o capital. Aquela velha história: a roupa suja não sai do cesto sozinha e vai para a gaveta. Quem faz a comida, quem lava a louça tudo isso está relacionado à reprodução da vida, a chamada reprodução social e, portanto, alguém ganha com isso.

Quando se tem uma sociedade que está construída num trabalho de cuidado gratuito, não remunerado, baseado nas relações afetivas e emocionais, está se tendo uma maior exploração, e essa maior exploração, evidentemente, cai nas costas dos trabalhadores mais pobres. Tem um recorte de classe, um viés racial, étnico (negros) e de gênero (mulheres).

Até hoje, quem cuida no Brasil é a mulher pobre e negra, que está sendo explorada por esse cuidado, ou gratuito ou mal remunerado. É nisso que implica o reconhecimento no texto da Lei da Política Nacional do Cuidado, e é o aspecto que considero mais relevante.

A Política Nacional do Cuidado terá impacto semelhante à PEC das domésticas, a regulamentação da profissão de trabalhadora doméstica, que também sempre teve essa mesma lógica escravocrata. Depois, a sociedade teve que partir para outros arranjos. E embora a gente precise destacar que apenas 25% dos domicílios brasileiros contratam trabalho (isso é um dado que está lá na nossa pesquisa do Cebrap), de babá ou cuidadora, vai ter um impacto nessas relações sociais. E isso vai depender ainda de como evoluir a discussão da aplicação do plano.

Por exemplo, uma das discussões mais polêmicas e que divide opiniões é a remuneração para o cuidador familiar. Porque outros países remuneram alguns tipos de benefícios para pessoas que precisam sair do mercado de trabalho para cuidar. Com o envelhecimento da população, isso começa a atingir um maior número de pessoas a ponto de, nos países mais envelhecidos, gerar um abalo na oferta de trabalho, o que implica numa inflação de salários.

É toda uma relação econômica e social que se modifica a partir do reconhecimento do cuidado como um trabalho.

Portanto, a PNC tem tudo pra se chocar com o que podemos chamar de ideologia neoliberal que predomina na administração pública, com seus dogmas de austeridade, corte de despesas sociais, controle fiscal, precarização trabalhista etc? Como você mesmo afirmou em entrevista no ano passado, é fundamental a participação do Ministério da Fazenda na implementação desta política?

Sim, colocamos isso desde o início do grupo de trabalho que elaborou a política, quando a Fazenda ainda não estava, e isso aconteceu em países que conseguiram minimamente apresentar alguma solução. Devemos destacar que não tem país que tenha solucionado a questão do envelhecimento populacional. Há alguns países com algumas coisas melhores, outras piores, mas o mundo inteiro está diante desse desafio e algumas boas práticas tiveram a participação dos ministérios econômicos desses outros países.

Tais discussões implicam um investimento público, porque como perguntado temos hoje a maior oferta de cuidado pelo mercado, que é a construção das grandes redes, por exemplo, de instituições de longa permanência para idosos, uma série de serviços domiciliares que são privados. E essa oferta do mercado, aqui também falando no campo da saúde, se refere aos 25% da população que têm condições de adquirir. Coincidentemente, são os mesmos 25% que têm plano de saúde. Para essa parte da população, pode ter até uma redução de gastos devido à concorrência. Seja o trabalho domiciliar, de cuidado, seja a institucionalização ou mesmo a creche ou os cuidados para pessoa com deficiência. Mas como os outros 75% da população vão equacionar o aumento da demanda por cuidado? Porque também vai ter um envelhecimento proporcional dessa parcela da população, mesmo que ela não atinja os níveis de longevidade, de expectativa de vida daquelas pessoas dos estratos sociais de maior renda, mesmo com as desigualdades de classe, regionais, territoriais, de expectativa de vida etc.

Hoje, ainda existe pressão sobre o cuidado infantil, demandas por creches, de mães que deixam de trabalhar porque precisam cuidar e não têm onde colocar as crianças. Isso tende a ser reduzido com a crônica queda da taxa de fecundidade que nós assistimos. Na outra ponta, tende a ser ampliado o cuidado com pessoas idosas. Dessa forma, aparecem grandes desafios na saúde: o aspecto econômico de redução da oferta de trabalho, de quem vai cuidar e a remuneração desse cuidador familiar que chamamos de cuidador informal.

Acesse a entrevista no site de origem.

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