O papel das mulheres na transição para sistemas alimentares sustentáveis e na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, por Marisa Singulano, Amanda Leão Cardoso e Maria Cristina Teixeira Braga Messias

33468909791_2074b0ea6b_o

Foto: Mídia Ninja

10 de junho, 2025 Diplomatique Por Marisa Singulano, Amanda Leão Cardoso e Maria Cristina Teixeira Braga Messias

Diante da persistente desigualdade de gênero no meio rural, como as políticas públicas podem valorizar e fomentar o trabalho das mulheres, reconhecendo sua contribuição para uma produção mais sustentável e essencial no combate à fome e à insegurança alimentar e nutricional?

A crise ambiental e climática não afeta da mesma forma os diferentes grupos sociais. As mulheres estão entre as mais impactadas pelas mudanças climáticas, em razão de desigualdades sociais, econômicas e políticas historicamente construídas. Como consequência, são desproporcionalmente afetadas por eventos climáticos extremos. Ao mesmo tempo, ocupam posições de destaque na linha de frente das respostas aos desastres, como mostram análises recentes sobre a resiliência e o engajamento político das mulheres no enfrentamento da crise climática. Elas também desempenham um importante papel na construção de estratégias voltadas à mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Esse protagonismo é especialmente evidente na agricultura e na alimentação. Nesses contextos, elas ocupam posições centrais na construção de sistemas alimentares sustentáveis, que, por sua vez, têm potencial para contribuir com a redução dos desequilíbrios ambientais e climáticos.

Sistemas alimentares e mudanças climáticas

Os sistemas alimentares – entendidos como uma complexa rede de atores, práticas, objetos e normas que regulam a produção, a distribuição e o consumo de alimentos – estão relacionados com o atual contexto de crise ambiental e climática. As mudanças no clima afetam diretamente esses sistemas, comprometendo a produção agrícola, a disponibilidade de alimentos, os meios de subsistência de comunidades rurais e a segurança alimentar de populações vulneráveis. Ao mesmo tempo, determinados sistemas alimentares podem intensificar os desequilíbrios ecológicos, contribuindo para o agravamento da crise climática, especialmente quando baseados em modelos hegemônicos de produção e distribuição pautados por uma lógica extrativista voltada à acumulação de capital. No Brasil, o agronegócio exemplifica esse padrão, cujas técnicas de produção estão atreladas a processos de desmatamento, degradação de biomas e esgotamento de recursos naturais.

Por outro lado, sistemas alimentares baseados em práticas sustentáveis — enraizadas nos saberes tradicionais, nos vínculos comunitários e em formas coletivas de organização — mostram-se como alternativas viáveis frente aos desafios ambientais contemporâneos. As experiências agroecológicas na América Latina são provas concretas do potencial transformador dessas abordagens. No modelo agroecológico, o manejo dos recursos naturais ocorre de maneira integrada às práticas cooperativas de produção, distribuição e consumo, promovendo uma reconexão entre as comunidades, a natureza e os alimentos. Essas práticas, além de contribuírem para a conservação e a recuperação dos ecossistemas, também confrontam a lógica excludente e destrutiva do modelo neoliberal¹. Nesse processo, as mulheres vêm desempenhando um papel fundamental, seja na preservação e na transmissão dos saberes tradicionais, seja na construção de alternativas alimentares mais justas, sustentáveis e enraizadas nos territórios.

O papel das mulheres na agricultura e na alimentação

Estudos revelam que as mulheres detêm uma maior diversidade de conhecimentos sobre os recursos alimentares e medicinais do que os homens, especialmente em sociedades patriarcais². Elas desempenham papéis importantes em diversas atividades que compõem o sistema de produção, como o cultivo de hortas e pomares, o cuidado com animais e outras tarefas frequentemente consideradas “secundárias” em relação às culturas comerciais. No entanto, essas atividades são essenciais para garantir o fluxo de biomassa, conservar a biodiversidade e domesticar plantas, contribuindo para a segurança alimentar do núcleo familiar.

Além disso, a participação das mulheres nas culturas comerciais e na geração de renda também é significativa, embora muitas vezes invisibilizada³. Sua presença é expressiva na organização das unidades produtivas agroecológicas e vem crescendo nos últimos anos no Brasil e em toda a América Latina. Estima-se que as mulheres camponesas sejam responsáveis por produzir entre 70% e 80% dos alimentos consumidos pelas populações mais pobres do mundo⁴. No Brasil, estudos indicam que elas são responsáveis por cerca de 35% dos empreendimentos associativos solidários e aproximadamente 50% da produção voltada ao autoconsumo⁵. Além disso, 80% das pessoas participantes do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – uma das principais políticas públicas de segurança alimentar e nutricional do país – são mulheres⁶.

Embora os dados anteriores evidenciem a relevância das mulheres tanto para a garantia da segurança alimentar quanto para a geração de renda nas famílias camponesas, o Censo Agropecuário de 2017 revelou uma significativa desigualdade de gênero na gestão dos estabelecimentos agropecuários no Brasil. Em um universo de 5,07 milhões de estabelecimentos – familiares e não familiares – 81,3% estavam sob gestão masculina, enquanto apenas 18,7% eram geridos por mulheres, conforme apontam as autoras do estudo “As mulheres no Censo Agropecuário de 2017”. O levantamento revela ainda que entre os estabelecimentos da agricultura familiar, apenas 19,7% eram dirigidos por mulheres, em contraste com 15,2% nos não familiares, o que evidencia a baixa presença feminina na direção dos estabelecimentos, ainda que sua participação seja relativamente maior no âmbito da agricultura familiar.

Outro dado relevante diz respeito ao destino da produção, se voltada ao mercado ou ao autoconsumo. Nos estabelecimentos da agricultura familiar dirigidos por homens, 59,4% da produção é destinada à comercialização e 42,1% ao consumo próprio e de pessoas com laços de parentesco com o produtor. Já nos estabelecimentos dirigidos por mulheres, observa-se o oposto: 54,1% da produção é destinada ao consumo próprio, enquanto 45,9% à comercialização. Esses dados demonstram a importância das mulheres na promoção da segurança alimentar e nutricional, ainda que grande parte de sua produção voltada ao autoconsumo permaneça não registrada, não declarada e, portanto, invisibilizada nas estatísticas oficiais.

Além disso, apesar do elevado uso de agrotóxicos na agricultura brasileira, inclusive em parte da agricultura familiar, as pesquisadoras destacam que os estabelecimentos geridos por mulheres tendem a utilizar menos esses produtos7. No total, 33% dos estabelecimentos agropecuários declararam usar agrotóxicos, sendo 35,6% sob gestão masculina e apenas 22,4% sob gestão feminina. Especificamente na agricultura familiar, o uso foi registrado em 33,2% dos estabelecimentos, com 35,9% sob gestão masculina e 22,3% sob gestão feminina.

Acesse o artigo no site de origem.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas