Em dez anos, 2.245 foram libertadas. Maioria é negra e atua na pecuária e lavouras – especialmente a de café. Mães com filhos pequenos são as mais suscetíveis à coerção. Trabalho doméstico é invisibilizado nas denúncias. Luta contra violações precisa adotar enfoque de gênero
Aos 62 anos, Cida* trabalhava como cozinheira em uma frente de desmatamento de floresta nativa em uma fazenda em Pimenta Bueno (RO). Durante seis meses, ela chamou de casa um barraco de lona plástica sem paredes nem energia elétrica. Acordava todos os dias às 5 da manhã e só parava de trabalhar por volta das 21 horas, sem direito a folgas.
Nesse tempo, Cida perdeu o filho, que atuava na derrubada das árvores na mesma propriedade e morreu atingido por um galho enquanto serrava um tronco. Dias depois, ela foi uma das 17 pessoas resgatadas em condições análogas às de escravo por uma operação do governo federal, em agosto de 2019.
Contada em um relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a história de Cida se soma à de outras 2.730 mulheres resgatadas em situação de trabalho escravo no Brasil entre 2003 e 2023. O número de mulheres libertadas representou cerca de 6% das quase 46 mil pessoas alcançadas pelas autoridades.
Dados inéditos, sistematizados pelo Projeto Perfil Resgatado, da Repórter Brasil, cruzam informações de diferentes sistemas oficiais do governo federal para fazer um recorte de gênero entre as pessoas libertadas do trabalho escravo nas últimas duas décadas. A pesquisa levantou dados de 2.245 mulheres — 82% do total de resgatadas no período.
As mulheres vítimas desse crime têm um perfil de alta vulnerabilidade: 66% estudaram até o ensino fundamental e 16% eram analfabetas. Duas em cada três eram trabalhadoras rurais atuando na pecuária e em lavouras, especialmente na de café; 8% estavam ocupadas no setor têxtil. A cada dez resgatadas, sete são negras.
No período entre 2003 e 2023, Minas Gerais lidera o ranking de Estado com mais resgates: foram 510 mulheres libertadas. Em seguida, aparecem Pará (419) e São Paulo (229).
‘Invisibilização’ do trabalho de mulheres pode gerar subnotificação de casos de escravidão
“Em alguns casos, elas atuam na pecuária ou nas lavouras fazendo o mesmo serviço que os homens, mas o mais comum é que elas se dediquem às atividades de cuidado como cozinheiras, faxineiras e mesmo como cuidadoras de crianças”, explica Natália Suzuki, gerente de Educação e Políticas Públicas da Repórter Brasil, e doutora no assunto pela USP (Universidade de São Paulo). ”Assim como ocorre na sociedade, estas atividades são invisibilizadas”, complementa.
A invisibilização é um dos fatores que pode levar à subnotificação do número de resgates, principalmente no início dos anos 2000. Atividades desempenhadas pelas mulheres nem sempre eram vistas como trabalhos com potencial para geração de vínculo empregatício e, consequentemente, de direitos trabalhistas — fenômeno similar ao que ocorre no mercado de trabalho regular.
“Em alguns casos de resgate, a mulher que cozinhava para um grupo de trabalhadores, sujeita às mesmas condições degradantes e de exploração, sequer era considerada resgatada, pois havia uma dificuldade por parte do Estado e de seus agentes de entender que ela também estava sendo escravizada. Como consequência, ela não recebia as restituições financeiras devidas”, acrescenta Suzuki.
Na avaliação de Tatiana Bivar, procuradora do MPT (Ministério Público do Trabalho), as políticas públicas de combate ao trabalho escravo vêm passando por um “processo de transformação” para levar em conta questões de gênero. “Nos últimos anos, inclusive, começamos a identificar a necessidade de termos mulheres nas equipes de agentes também, inclusive na força policial, especialmente se é um caso que envolve exploração sexual ou trabalho doméstico”, afirma Tatiana Bivar.
Atendimento a mulheres escravizadas precisa de protocolos específicos
Além da invisibilidade das atividades domésticas e de cuidado, a mulher escravizada também precisa enfrentar uma série de outras particularidades relacionadas a questões de gênero.
“Sabemos que mulheres grávidas ou com filhos pequenos estão muito mais sujeitas a uma série de violências e ameaças. As crianças costumam ser, inclusive, usadas para coação das mães por parte dos empregadores: ‘se você fugir ou reclamar, eu posso matar seu filho’”, diz Suzuki. Para ela, faltam protocolos específicos para atendimento de mulheres vítimas de trabalho escravo.
“Por exemplo: não há nenhum enfoque direcionado para casos de mulheres que saem do trabalho escravo com filhos pequenos. Ou para uma mulher resgatada que sofreu abuso sexual ou violência de gênero”, diz.