Não importa em qual bolha você se insira, certamente suas redes falaram a mesma língua neste domingo, fenômeno raríssimo nesta nação das mais graves disparidades sociais e polaridades políticas. Mas num país em que o instinto canarinho (ainda que pistola) agoniza, fica difícil não jogar a toalha diante da estreia que traz como destaque noticioso da Rússia, além do empate morno e sonolento da seleção contra a Suíça, o vídeo machista, misógino e racista que foi protagonizado por torcedores brasileiros.
(O Globo, 18/06/2018 – acesse no site de origem)
Nas imagens, cerca de cinco homens brancos se reúnem em torno de uma mulher loira, supostamente russa. Abusando da simpatia e da falta de conhecimento do português da jovem, eles a induzem a participar de um coro grosseiro em referência ao órgão sexual feminino. Entre as frases entoadas estão: “Essa é bem rosinha”, “Ai, que delícia” e “Buceta rosa”.
Estamos certos que é constrangedor ler e ouvir este palavrão. Mas há o que incomoda bem mais, como os dados que seguem: no Brasil, uma mulher é morta a cada duas horas; uma mulher é estuprada a cada onze minutos; mais de cinco mulheres são violentadas por hora; e cerca de 70% das vítimas de abuso são crianças e adolescentes. Sim, aqui é todo dia um 7 x 1 para a cultura do estupro.
Os homens do vídeo são, portanto, bem mais do que inconvenientes e bobos. Eles são grosseiros, abusivos e alavancam uma sociedade machista que sustenta os números alarmantes acima. Pois não é apenas com leis que minimizam-se estatísticas criminais. A operação transformadora é basilar, age na reestruturação de pensamentos, levantando discussões políticas e socioeducacionais.
As crianças e jovens que acompanham o mundial de futebol precisam ver em destaque mulheres que não são apenas as musas da Copa, mas trabalham como especialistas, comentando e narrando as partidas. Precisam debater por que não há negros na torcida brasileira que tem dinheiro para viajar para a Rússia e comprar ingressos. Precisam refletir que o manual de bom comportamento para homossexuais que existe no país europeu, na realidade, não deveria parecer tão absurdo no Brasil, país que mais mata transexuais em todo o mundo. Precisam observar que a Copa vai muito além das quatro linhas, e que tudo pode passar por uma “brincadeira” machista e terminar até em feminicídio.
A gente até tenta usar a Copa para arejar a cabeça: se distrair com o futebol bonito, eleger os melhores craques em campo e fora (uma objetificaçãozinha masculina não faz mal, para variar…), rir do cabelo do Neymar. Mas a realidade é dura, mesmo durante os jogos. Pra frente, Brasil: sigamos atentxs e juntxs.
Beatriz Mota é editora-assistente de mídias sociais do Jornal O Globo