(IG, 20/05/2014) Elogios indiscretos, histórias e confidências íntimas, toques constrangedores. Apesar do silêncio das vítimas, esse tipo de perseguição no ambiente de trabalho, que pode ser caracterizado como assédio sexual, é uma situação mais comum do que se imagina.
De acordo com uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho, 52% das mulheres economicamente ativas já sofreram esse tipo de abuso, psicológico ou físico, no ambiente profissional.
“É um crime em que o autor precisa ter uma qualidade especial, ser superior hierárquico ou ter uma ascendência em relação à vítima. Também deve existir o constrangimento com uma finalidade específica, de obter vantagem ou favorecimento sexual. A simples paquera não configura um crime”, explica Rogério Cury, advogado especialista em direito penal.
Embora os números sejam alarmantes, a legislação brasileira ainda tem dificuldades para combater esse tipo de crime e poucos casos são julgados no país, também por conta do machismo, uma questão cultural.
“Infelizmente, se você analisar, é a infração de menor potencial ofensivo, com uma das menores penas do Brasil. A detenção por assédio sexual é de um a dois anos, caso o crime seja comprovado”, afirma Rogério Cury.
Já em situações em que o chefe elogia sua funcionária, passa cantadas e outros tipos de brincadeiras, que muitas vezes soam constrangedoras, não existe o ato criminoso.
“Alguns juízes até compreendem que esse tipo de assédio é um crime, sim, mas são a minoria”, pondera a advogada Adriana Calvo, especialista em direito trabalhista.
“Tive medo do que diriam sobre mim”
Beatriz*, 28, de Poços de Caldas, conseguiu o primeiro emprego aos 16 anos, em uma loja de produtos de informática. Foi nessa primeira experiência profissional que a então menina foi assediada pelo chefe e proprietário da empresa, pai de uma amiga que a havia indicado para a vaga de secretária.
A jornalista se lembra de que tudo começou com os comentários que ele fazia sobre as clientes que saíam da loja aos demais funcionários, que deixavam todos sempre muito constrangidos. O clima ficava ainda mais tenso quando o chefe revelava detalhes sobre a intimidade com a mulher.
“Eu era obrigada a dar risadinhas amarelas, disfarçar, porque era um emprego do qual eu não podia abrir mão”, lembra Beatriz.
A situação chegou ao limite em um sábado, quando Beatriz precisou ficar sozinha no escritório, na companhia do chefe.
“Eu estava sentada no balcão, quando ele veio ao meu lado para contar que tinha ido com uma amante para um clube de campo aqui da cidade, revelando detalhes do que eles faziam lá, além de contar sobre outras meninas da minha idade com quem ele tinha saído. Foi quando eu percebi que ele estava com a mão na minha perna, subindo cada vez mais”, conta a jornalista.
Em estado de choque, ela conseguiu se livrar do contato com o chefe, que percebeu seu súbito mal-estar e foi embora da loja, sem dizer uma palavra. Beatriz chegou a ligar para outro funcionário e explicar o que tinha acontecido, além de contar a história do assédio para uma tia.
“Ela ficou com pena de mim, mas disse que no trabalho, às vezes, precisamos engolir certas coisas”, conta.
Depois do assédio, os comentários obscenos do chefe continuaram e o constrangimento de Beatriz só aumentou, até que ela resolveu forçar a própria demissão, para evitar comentários na cidade. Ela só foi falar sobre o ocorrido com mãe e irmã muitos anos depois, e acabou descobrindo que o chefe já tinha assediado outras meninas.
“Me arrependi de nunca ter feito uma denúncia, porque penso que poderia ter protegido outras meninas que passaram pelo mesmo que eu. Mas eu era muito nova na época e sentia medo e vergonha do que as pessoas iriam pensar, se iriam me culpar ou dizer que eu tinha provocado tudo aquilo”, confessa Beatriz.
Essa experiência não foi isolada. Alguns anos depois, aos 22, Beatriz precisou lidar com outro caso de assédio sexual: um funcionário mais velho chegou a sugerir que ela fizesse sexo oral nele, quando ela era assistente administrativa de uma empresa que beneficiava café. O choque dessa vez foi ainda maior, e a empresa considerou entrar com um processo para exonerar o funcionário em questão, mas Beatriz não foi em frente com a denúncia.
“Eu tive medo que ele me seguisse, já que eu morava em uma cidade pequena, e meus superiores disseram que não poderiam me ajudar com nenhuma proteção. Mais uma vez me calei”, lamenta ela.
“Não quis fazer escândalo”
Também era o primeiro emprego de Fernanda*, de Santo André, hoje com 21 anos. Há cinco, ela estava na festa de fim de ano da empresa em que trabalhava como recepcionista, com mais um grupo de amigas. Fernanda e as meninas conversavam sobre o fato de o proprietário e chefe da empresa ter o hábito de se aproximar demais das funcionárias, tirá-las para dançar e se aproveitar do estado de embriaguez de algumas.
“Tinha reparado que ele já estava bem bêbado e tentando se aproximar de mim. Quando fiquei sozinha, ele já estava ao meu lado, com o braço ao redor da minha cintura. Tentei me afastar, mas ele não deixou. Começou a dançar comigo e subiu o braço que estava na minha cintura até o meu pescoço. Me afastei novamente e ele voltou a mão para a minha cintura. Quando me desvencilhei de vez, ele desceu a mão e alisou minha bunda”, conta Fernanda.
A estudante não teve nenhuma reação, por conta do choque de ter sido assediada em plena festa de fim de ano da empresa. A esposa do chefe e os filhos também estavam lá, por isso ela evitou qualquer cena que resultasse em um escândalo, por medo que eles a julgassem como a “vilã” da situação.
Uma semana depois do ocorrido, Fernanda voltou ao trabalho e reencontrou seu chefe, apesar de tentar evitar qualquer tipo de contato ou troca de olhares.
“Ele passou atrás da minha cadeira, arrumou meu cabelo, me falou bom dia e saiu para sua sala. Depois disso, ele sempre passava por lá mexendo comigo, para chamar minha atenção. Foi quando decidi começar a faltar, para que me demitissem”, lembra ela.
Fernanda sentiu vergonha e achou melhor os pais não ficarem sabendo de nada, já que eles conheciam o chefe. Hoje, ela se arrepende de não ter feito nenhuma denúncia, principalmente depois de ter descoberto que aquele comportamento era recorrente com outras funcionárias da empresa.
“Acho que o que me faltava era informação, hoje sei que isso é muito mais frequente do que a gente imagina. Não sei se foi pelo que aconteceu, mas agora vejo tudo com outros olhos e não sentiria medo de denunciar”, acredita ela.
Alternativas
As situações vividas por Beatriz e Fernanda, por si só, não se enquadram no crime de assédio sexual, de acordo com a legislação brasileira, o que acaba fortalecendo e perpetuando a cultura de assédio no meio profissional. Pela dificuldade em reunir provas e levar adiante o processo, muitas vítimas acabam desistindo de entrar na Justiça.
“A vítima fica coibida de tomar alguma providência, porque sabe que nada de grave acontecerá com o culpado. O processo também é outro problema, porque a mulher precisa revivera história, a exposição e humilhação pelas quais passou, para tudo terminar com uma pena de multa”, ressalta Rogério Cury.
Mesmo assim, é importante que as mulheres e vítimas se posicionem contra esse tipo de abuso e busquem uma maneira de denunciar o agressor, seja por meio de uma ouvidoria na própria empresa ou na Delegacia da Mulher, que está mais familiarizada com casos de assédio sexual. Vale lembrar que é fundamental levar e-mails, telefonemas e mensagens como provas do constrangimento.
“O assédio sexual é que ele é praticado de forma íntima, por isso é mais difícil recolher provas. Nós recomendamos que elas gravem conversas, filmem, não excluam e-mails e mensagens com teor sexual e por aí vai. A Justiça do Trabalho valoriza muito o depoimento da vítima, porque se entende que é a única prova que ela tem. Se o chefe ou superior já tem outras denúncias de assédio sexual, a denúncia ganha mais força”, explica Adriana Calvo.
Segundo a especialista, ainda é possível entrar no site do Ministério do Trabalho e fazer uma denúncia anônima.
“Quando mais de um caso for denunciado, eles abrem um inquérito e podem entrar com uma ação pública contra a empresa”, detalha ela.
Se o assédio não se configurar como crime, uma saída é tentar denunciar o agressor por injúria e difamação, já que a honra da vítima é atingida.
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