Com o ‘Escola sem Partido’, será proibido falar de violência doméstica e sexual nas Escolas, por Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno

25 de novembro, 2018

A ideologia por trás do projeto “Escola Sem Partido” é permissiva e cínica para com a questão da violência sexual e doméstica, já que os grupos que defendem o projeto estão, tácita ou explicitamente, aceitando que 221.238 registros de violência doméstica feitos a partir da Lei Maria da Penha (lesões corporais), em 2017, sejam esquecidos ou desconsiderados.

Se o projeto for aprovado, o Estado ficaria impedido de alertar para o fato de que, segundo o Atlas da Violência, cerca de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes e que, destes, algo como 50% foram abusadas por alguém próximo e do seu convívio: pais e padrastos, primos, vizinhos.

Se a Escola não falar de papeis de gênero e de violência, os homens vão continuar a achar que podem abusar livremente dentro de casa e/ou no transporte público e a violência continuará a fazer parte do cotidiano de milhões de brasileiros.

E isso vai contra a opinião da própria população. De acordo com pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública ao Datafolha, 91% da população adulta com 16 anos de idade ou mais do país acredita que “devemos ensinar meninos a não estuprar”. Ou seja, devemos ensinar que pouco importa quem é o agressor ou qual a roupa que a mulher está vestida e/ou a profissão ou comportamento das vítimas, “não” é sempre “não”.

Isso significa dizer que, na medida em que a sociedade brasileira ainda é extremamente machista, mulheres e crianças precisam ser protegidas inclusive da família, muitas vezes movida por papéis tradicionais de gênero que moldam o que cada integrante pode ou não fazer e que não estão necessariamente balizados nas leis.

E isso não tem nada a ver com posições que hoje são celeremente rotuladas de “comunistas” ou “esquerdistas” pelos ególatras porém fracos candidatos brasileiros a Martin Heidegger, filósofo alemão antiglobalista e bastante simpático ao Nazismo e a Adolf Hitler. A violência contra a mulher é uma batalha civilizatória mundial que separa as nações e revela o caráter moral e ético de suas populações.

Qualquer cidadão, seja homem, mulher, criança, jovem ou adulto, tem assegurado pela lei o direito à integridade física e psicológica, bem como fazer o que quiser e for permitido pelo Estado. Educar para a cidadania é permitir que os indivíduos tenham clareza de seus direitos e que possam exercê-los em sua plenitude – lembremos que as palmadas eram algo socialmente aceito e que hoje são crime.

O projeto “Escola sem Partido” ignora propositalmente que a Escola é espaço de formação da cidadania, pela qual as regras do Estado do Direito são transmitidas às crianças e adolescentes, incluindo a noção de reconhecimento de si e dos outros como sujeitos de direitos.

As famílias não têm, em um Estado de Direito, o poder absoluto sobre os indivíduos, mesmo reconhecendo que esta seja uma esfera fundamental e legítima de formação moral. A ética e a cidadania se constroem na relação entre público e privado e não só dos ensinamentos do núcleo familiar. O Estado tem a obrigação de oferecer uma formação digna e que permita pluralismo de ideias, pensamentos e posições.

E, entre as obrigações de uma Escola, está sim falar que a violência sexual e de gênero é um problema grave – apenas em 2017 foram registrados mais de 60 mil ocorrências de estupro no Brasil. E, pior, pesquisas em todo o mundo mostram que a maior parte destes casos não chegam as autoridades públicas, dado que as vítimas tem vergonha e medo de notificar.

No Brasil, a última pesquisa nacional de vitimização indicou que cerca de apenas 7% das vítimas o fazem. Segundo esta informação, podemos estimar que ocorreram mais de 600 mil casos de violência sexual apenas no ano passado. E, por estes números, mais de 210 mil casos de estupros ocorreram dentro das próprias casas e por pessoas próximas.

Em resumo, as estatísticas revelam a importância do debate sobre gênero e educação sexual nas escolas. Muitos episódios de violência só foram interrompidos graças aos professores, que perceberam os abusos nos debates sobre educação sexual na sala de aula e acionaram a rede pública de acolhimento. Criança precisa aprender que o abuso é uma violência e não um comportamento naturalizado pelas relações familiares.

Também precisamos falar com nossas crianças sobre respeito e equidade. Meninos precisam aprender que meninas são seres humanos iguais a eles e que merecem respeito. Do contrário, podem tornar-se os estupradores e abusadores de amanhã.

Infelizmente o debate sobre “Escola sem Partido” fica no discurso raso das redes sociais e não reflete sobre as estatísticas indicadas acima, com diversos segmentos acusando as discussões necessárias à formação de nossas crianças como algo ideológico – no fundo, sendo o projeto ele sim uma peça de pura e violenta ideologia.

E, em um país em que se faz necessário uma lei que diga para parte dos homens que ejacular em uma mulher no transporte público é crime, achar que a Escola precisa ser neutra é a forma encontrada por segmentos que buscam dominar corações e mentes da população para seus projetos de poder. E, para tanto, acusam o diferente de “imoral” para alegremente participarem da “reunião de bacana“, muito bem descrita no Pagode de Bezerra da Silva.

O que os bacanas do “Escola Sem Partido” querem esconder é que, ao contrário do que diz o presidente eleito Jair Bolsonaro, não devem ser “papai e mamãe” os únicos a falarem sobre sexo com as crianças pois muitas vezes são eles os agressores. Sim, temos que lidar com cuidado e pudor com o tema, mas a violência doméstica e de gênero não irá desaparecer impedindo-se que ela seja abordada nas Escolas.

O silêncio e a vergonha é que deveriam ser combatidos se a preocupação com a família fosse verdadeiramente fundada numa ética pública de respeito e garantia da integridade física e psicológica de todas e todos.

Por Renato Sérgio de Lima, com Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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NOTA PÓS PUBLICAÇÃO: Após a publicação do texto, ontem, muitos dos comentários foram no sentido de criticar o argumento aqui exposto com a justificativa de que não há, segundo eles, nenhum impedimento no Projeto de Lei para que tais questões sejam tratadas pela Escola.

Impressiona que as convicções pessoais e morais de alguns leitores estão obnubilando suas capacidades de interpretação de texto e reforçando, exatamente, a postura de acusação do outro. Mas, para transparência no debate, vale citar o Artigo 2o. do substitutivo, que é explícito em vedar a educação sexual: “O Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”.

Se somarmos a redação proposta ao item XIV da LDB pelo Artigo 6o, do PL, a saber: “[…] tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”, fica patente o impedimento criticado neste artigo. Ou seja, se a Escola não pode falar nada sobre sexo que não seja de acordo com os valores familiares e estes têm precedência legal, o PL está silenciando um dos mais graves problemas no campo da violência contra a mulher e a criança no país.

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