Feminicídio na Argentina é “vingança contra as mulheres que não se calam”

08 de janeiro, 2017

A 19 de outubro de 2016, as mulheres pararam a Argentina, com uma greve geral de uma hora e manifestações em várias cidades do país. O dia de protesto foi chamado de “Quarta-feira Negra” e foi uma reação à brutal violação e homicídio de Lucía Pérez, uma entre as mais de 200 mulheres que morreu entre janeiro e outubro do anos passado. Em 2015, as estatísticas oficiais falavam em 235 mulheres assassinadas. Os números do feminicídio e a brutalidade dos crimes na Argentina saltaram fronteiras e foram notícia um pouco por todo o globo. Mas 2016 não terminaria sem chocar aquele país, e o mundo, mais uma vez. Em dezembro, foi notícia a morte de Irma Ferreyra Da Rocha, de 47 anos. Violada e empalada morreu depois de agonizar três horas. Estes e outros casos são a prioridade da luta da plataforma Ni Una Menos, uma associação que luta contra os feminicídios e a desigualdade de género na Argentina. Foram as promotoras do protesto de outubro e prometem outras ações para o que chamam de violência machista, herdade de um sistema patriarcal. O Delas falou com María Florencia Alcaraz, membro da plataforma.

(Delas, 08/01/2017 – acesse o site de origem)

Os homicídios de duas mulheres argentinas – Irma Ferreyra Da Rocha e Lucía Pérez – chocaram o mundo pela sua crueldade, violência extrema e pela mutilação do corpo feminino. Porquê toda esta violência?
Nos casos recentes de mulheres assassinadas na Argentina, vemos, de facto, que há uma maior crueldade em relação ao seu corpo. Lamentavelmente, isso é uma reação ao empoderamento feminino, para qual não “basta” violar ou matar. Trata-se de subjugar os corpos. Os feminicidas não são doentes, nem animais, não são “monstros” ou “loucos”, como referem a imprensa, o direito e a medicina. Patologizar os feminicidas é esconder uma rede comum que une todos e cada um dos casos. Esses homens são filhos sãos de um sistema patriarcal que nos oprime diariamente, através de formas distintas de abuso.

A plataforma fala de uma vingança machista e de uma guerra contra as mulheres. Mas vingança e guerra com base em quê, exatamente?
É uma vingança contra as mulheres que não se calam. A violência machista sempre existiu, mas com as evoluções dos últimos anos, a linha da tolerância a essas violências baixou. Ao primeiro insulto, maus-tratos, violência psicológica, as mulheres denunciam. Antes toleravam mais a violência, agora não. Por isso, a crueldade é uma resposta a essas mulheres empoderadas.

Diz-se que morre uma mulher a cada 30 horas, na Argentina. Confirmam esses números?
Segundo a organização Casa de Encontro, entre janeiro e outubro de 2016, o número de feminicídios chegou aos 230: um a cada 30 horas. Não são números oficiais, são números que as organizações recolhem a partir da cobertura mediática. Nós, na plataforma, acreditamos que o número é mais elevado e o Estado tem de fazer um esforço para unificar as estatísticas oficiais e estas têm de refletir a dimensão real do problema.

Em Portugal, não há, no código penal, a distinção entre feminicídio e homicídio. O que é que define o feminicídio e por que é importante separá-lo do homicídio?
O feminicídio é o assassinato de uma mulher pelo facto de ser mulher. Na Argentina, está tipificado no Código Penal, desde 2012.

A plataforma Ni Una Menos organizou em outubro de 2016 uma greve e uma manifestação contra a violência contra as mulheres, na sequência da violação e morte da jovem Lucía Pérez. Que importância teve essa ação para o ativismo feminino na Argentina?
A greve de mulheres permitiu-nos disputar uma certa hegemonia historicamente associada aos homens. Também permitiu aos sindicatos abordar internamente outros temas ligados à desigualdade que afeta as mulheres. Foi um salto qualitativo, falámos de feminicídios mas também falámos de desigualdade salarial, falta de representatividade na política e no mundo sindical.

Há violência machista, mas apesar de tudo há leis. Mesmo assim acusam o Estado de não estar à altura da crueldade dos feminicídios. O que é que falta fazer, na vossa opinião?
Falta um acordo para a problemática estrutural, um Conselho Nacional das Mulheres que trabalhe mais na prevenção, que apoie presencialmente as mulheres e não através de um call center. Exigimos também que se cumpra a Lei da Educação Sexual Integral: a prevenção e sensibilização são as chaves para combater o problema desde a infância e adolescência.

Nos últimos tempos, tem-se assistido, com as mudanças políticas em alguns países, a retrocessos nos direitos das mulheres, ou pelo menos no discurso que lhes é dirigido. Como é a situação na Argentina a esse nível?
Há um retrocesso total, que da parte do Estado se traduz em cortes nas políticas públicas para combater a violência machista. Conseguimos, com a plataforma, que fosse aprovada lei de apoio jurídico gratuito, mas mesmo assim o governo não pôs em ação. Também não aplicou, como política pública, a vigilância eletrónica dos agressores. E a Lei da Educação Sexual não só não se aplica integralmente em todas as zonas do país, como os técnicos de formação aos docentes, nessa área, foram dispensados pelo governo.

Comparam a crueldade com que Irma Ferreyra Da Rocha os métodos usados pela Inquisição, definindo-o como uma prática colonial. Mas esse não é um passado demasiado longínquo, quando não há muitos anos a Argentina vivia sob uma violenta ditadura?
A história por detrás destes crimes é o patriarcado que se mantém no tempo, se reproduz e reinventa

Como é que foi criada a Ni Una Menos?
A Ni Una Menos surge em março de 2015, durante uma iniciativa no parque da Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, onde fizemos uma maratona de leitura contra os feminicídios. Depois aconteceu a marcha de 3 de julho, em que milhares saímos para as ruas e que se repetiu em 120 cidades. Depois, em 2016 assumimos o desígnio ‘Vivas nos queremos’ e realizámos a greve de mulheres.

Que ações preveem realizar nos próximos tempos?
No dia 8 de março [Dia Internacional da Mulher] vamos organizar um protesto internacional de mulheres. Neste momento, há 22 países a articular ações, no âmbito desse protesto: Alemanha, Argentina, Brasil, Chile, Coreia do Sul, Costa Rica, Equador, El Salvador, Escócia, Honduras, Irlanda do Norte, República da Irlanda, Israel, Itália, México, Nicarágua, Perú, Polónia, Rússia, Suécia, Turquia e Uruguai.

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