Novo governo tem o desafio de proteger negras e periféricas, maioria das mulheres vítimas de homicídio por arma de fogo – crime que costuma acontecer fora de casa.
Quando falamos sobre o governo Bolsonaro e a destruição provocada tanto por sua incompetência quanto pela opção deliberada em arruinar, sempre nos referimos a grandes áreas, como a saúde, o meio ambiente, a educação e a segurança, todas arrebentadas na gestão que, felizmente, acabou, porra. No entanto, mais do que uma “área”, quem mais sofreu com a pulsão de morte do ex-presidente tem cara, gênero, classe e cor: mulheres pobres e negras.
Isso fica claro em uma pesquisa recente do Instituto Sou da Paz, pela qual sabemos que sete a cada 10 mulheres assassinadas por arma de fogo no Brasil são negras. O número revela como a liberação de revólveres e fuzis, obsessão do ex-mandatário, trouxe uma nova terrível camada de sofrimento para uma população cuja existência já é mais difícil.
Mas há uma questão pouco iluminada sobre essas mortes, e é sobre ela que os debates feministas e as construções de políticas públicas precisam também se concentrar. Tradicionalmente, tanto as instituições quanto a própria cobertura midiática se voltam para a violência doméstica ou o ódio de gênero como as razões únicas dos assassinatos, deixando de fora as mortes de mulheres ocorridas em outros contextos criminais. Dados de 2020 da mesma pesquisa mostram que os homicídios ocorridos fora de casa corresponderam a 45% das ocorrências de morte violenta por arma de fogo entre mulheres negras. Dentro de casa, esse número foi de 25%.
Essa invisibilização é um dos temas centrais das discussões realizadas pela socióloga Ana Paula Portella, autora do livro “Como morre uma mulher?” (Editora UFPE), no qual publica investigação sobre as múltiplas vulnerabilidades que levam mulheres – e também meninas – negras e pobres a serem mais vítimas da violência letal. A pesquisa levou em 2016 o primeiro lugar no 5º Concurso Internacional de Teses sobre Segurança Pública, Vitimização e Justiça na América Latina e no Caribe, além de uma menção honrosa no Prêmio Capes de Teses em 2015.
Para sua autora, o presidente Lula e a ministra da Mulher Cida Gonçalves precisam centralizar, com urgência, essa população nas políticas do novo governo. “São pessoas que vivem em áreas precárias de grandes cidades brasileiras, lugares de intensa desorganização social, com ausência de serviços públicos e onde não há controle da violência. Podem ser locais controlados por grupos criminosos, como é o caso do Rio de Janeiro, do Ceará, de São Paulo, onde você tem uma dominação territorial de certos grupos, e podem ser áreas como aqui, em Pernambuco, onde não há a dominação territorial, mas a atuação relativamente difusa de grupos criminosos. Nesses locais, não existem ações que levem à prevenção da violência criminal e há uma certa permissividade para a ocorrência de outras formas de violências”, me disse Portella.