A violência do silenciamento diário machuca mais do que um cuspe, por Philippe Ladvocat

29 de abril, 2016

(HuffPost Brasil, 29/04/2016) Você já parou para pensar o que você sentiria se, de uma hora para outra, o governo decidisse que você deveria continuar pagando todos os mesmos impostos mas revogasse alguns dos seus direitos básicos por causa de algo como… a cor dos seus olhos?

No campo de batalha que se tornou a questão dos direitos humanos (e mais especificamente dos direitos LGBT) no Brasil, o que mais chama a atenção é o excesso de egoísmo e a falta de empatia. Duas palavras-chave para tentarmos entender alguém que não se diz homofóbico, tem horror a ser taxado de preconceituoso, mas não sente a menor vergonha em repetir falácias superficiais que menosprezam a luta pela igualdade.

Quando falam que alguém “é gay mas não levanta bandeira” como se isso fosse um elogio, as pessoas revelam o abismo entre pertencer a um grupo majoritário, o de heterossexuais, e a falta de empatia em entender os problemas e agonias do outro, do que não pertence à mesma categoria. É por aí que vem o famoso discurso de “não sou homofóbico porque tenho amigos gays”. E a questão, muitas vezes escondida ou ignorada, é: você não precisa odiar ou maltratar os gays para ser preconceituoso.

Quando considera-se que levantar bandeiras ou fazer campanha pelos próprios direitos é algo condenável, expõe-se o próprio egoísmo de aquilo não é importante ou de, mais absurdamente ainda, achar que criar leis contra a homofobia é o mesmo que dar privilégios.

Privilégio, na verdade, é poder amar e demonstrar carinho sem que isso seja recriminado por alguém. Talvez não seja fácil para um heterossexual entender o que sente um pré-adolescente confuso ao ser chamado de “bicha” na escola sem nem mesmo saber o que ele próprio sente, mas isso não justifica que ele não tente se colocar no lugar dele. E dói na mesma intensidade ser colocado à margem da sociedade e não poder usufruir de direitos básicos como casar com a pessoa com quem ama ou não ser protegido por lei contra insultos direcionados à sua orientação sexual, inerente ao ser humano.

O ódio começa a ser propagado a quem simplesmente tenta criar uma sociedade que corrija os erros, puna a violência e eduque. Por quê tanta gente aceita que um bandido seja amarrado a um poste por roubar um celular mas acha um absurdo que uma lei crie penas mais duras a quem propositalmente tenta humilhar um colega de trabalho só por ele se sentir atraído pelo mesmo sexo?

Para essa sociedade machista e preconceituosa, o gay que tem voz é radical.

A pergunta é retórica porque a resposta é simples: aprisionados em seu próprio egoísmo, muitos não aceitam que se lute pelo o que é certo se isso não vai lhe proporcionar nenhum benefício. Em nome do “bem comum”, ignora-se os direitos das minorias, ainda que essas mesmas pessoas tenham amigos, primos ou tios gays. É a lei do “isso não é importante porque não me afeta”, uma fala implícita em que acha que é radicalismo um gay levantar a bandeira de sua sexualidade para lutar por mudanças.

O desenvolvimento desse pensamento mesquinho é, claro, a crítica à famigerada “vitimização”. Em nome disso, pessoas usam argumentos vazios e estúpidos para dizer que gays, lésbicas, bissexuais e trans gostam de ser fazer de coitados para “se dar bem”.

Essas pessoas nunca pararam pra pensar ou preferem ignorar o fato de que existem sentimentos reais muito fortes por trás de tudo isso. Nunca sequer se preocuparam em pensar como é difícil ter medo da solidão ou do que possa acontecer se você contar para amigos que é “diferente”. Ou como funciona a cabeça de alguém que reza todos os dias para acordar em um corpo diferente do seu. Nunca pararam para imaginar a vida de quem é expulso de casa pelos próprios pais por causa de um sentimento que não consegue controlar. Ou como é passar todos os dias o medo de levar uma surra se demonstrar afeto pela pessoa que ama, ainda que algo tão simples quanto andar de mãos dadas. E que tal ser praticamente banido de todas as principais religiões do mundo, não conseguindo se entregar a uma fé por não ser aceito?

E apesar de tudo isso, de todas as injustiças, a violência e o medo, de toda a insegurança e as incertezas, ainda existem a pressão para que as pessoas LGBT sejam moderadas. Só mostrar o amor, a educação e se conter.

Para essa sociedade machista e preconceituosa, o gay que tem voz é radical. Tentar ser visto como uma pessoa normal é acabar com o modelo tradicional que seria o pilar da sociedade (ainda que obviamente isso não esteja funcionando). E se alguém se impõe, se alguém revida, se alguém perde um pouco da calma que seja, recebe uma chuva de críticas. O filho de um casal lésbico que não poderia ter sido “grosseiro” (e ele não foi) ao responder uma pergunta ignorante. O jornalista que não poderia mandar o político inescrupuloso ir “procurar uma rola” porque isso não cria um debate educado. E por aí vai, em inúmeras situações diárias que acontecem fora das câmeras de televisão.

A violência moral que acontece todos os dias jamais mereceu manchete ou nota de rodapé.

 Mas aí vem o cuspe. Uma atitude errada em seu ambiente de trabalho? Sim. Uma atitude injustificada? Não. No calor do momento, em um dia tenso, um ambiente tomado por manifestações do absurdo e do que deveria ser inaceitável, uma homenagem a um torturador seguida por falas de “veado, boiola, queima-rosca”, após meses de semelhante bullying digno da infantilidade imbecil dos tempos de escola, resultam em uma perda de controle seguida por um cuspe.

Uma agressão muito mais moral do que física que não vai deixar marcas e muito menos atentou contra a saúde e o bem-estar corporal de quem o recebeu. Não é uma apologia ao cuspe, não é uma defesa política do autor do ato e nem a ideia de que violência verbal deva ser revidada com violência bucal. Mas é importante constatar que a violência moral que acontece todos os dias jamais mereceu manchete ou nota de rodapé.

A imprensa amarronzada, travestida de verde-e-amarelo, vai atrás do clique. E nada dá mais clique do que o oprimido perdendo o controle a razão. Um prato cheio para os comentaristas anônimos e os defensores do “livre arbítrio” de poder fazer com que alguém sinta o peso de ser rejeitado pelo mundo.

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