No dia 15 de março, a transexual Camila Albuquerque, 20, foi retirada de sua casa à força e morta com 15 tiros. O crime ocorreu na periferia de Salvador e faz parte de uma estatística que, segundo a ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), tem aumentado no Brasil: as mortes de LGBTs.
(UOL, 25/09/2017 – acesse no site de origem)
Até o dia 20 de setembro, 277 homicídios foram registrados neste ano, segundo levantamento do GGB. Trata-se da maior média de assassinatos desde que os dados passaram a ser contabilizados pela entidade baiana. Também pela primeira vez, a média de mortes ligadas à homofobia passou de um assassinato por dia.
Como este levantamento é subnotificado (ou seja, nem todos os crimes são registrados e, mesmo que sejam, a GGB não necessariamente tem acesso a eles), a realidade brasileira para os LGBTs é bem pior.
Segundo o presidente do GGB, Marcelo Cerqueira, apenas são registrados os casos em que a homofobia ou a transfobia foram um dos motivadores. “Esses casos todos partem do princípio de que a orientação sexual contribuiu de alguma maneira para que o crime ocorresse”, diz.
“A maior brutalidade contra um ser humano”
A brutalidade é marca presente em muitos dos crimes. No caso de Camila, a extrema violência levou a família a se afastar até mesmo das investigações.
“Não procuramos tomar muito conhecimento sobre o que houve naquele dia ou sobre o andamento do caso. Infelizmente ela se foi de uma forma brutal, e hoje ainda dói muito saber que ela não está ao nosso lado. Temos segurado em Deus e orado muito por ela”, explica Taiiana Nogueira, irmã da vítima.
Poucas horas antes de ser morta, Camila fez uma postagem em seu Facebook em que deixava um recado: “Me rebaixar? Sentir ódio? Para quê? Mulher que sabe seu potencial deve se olhar no espelho todos os dias e dizer ‘SOU MAIS EU'”.
Taiiana diz que toda a família estava em casa quando Camila foi arrastada para fora “com a maior brutalidade que um ser humano possa ter”. “Eles não respeitaram nem as crianças, que tinham acabado de fazer um ano de idade. Meu bebê ficou três dias sem comer por conta do pânico. Dói só de lembrar”, conta.
Falta investigação aos crimes
Em 2017, a média de assassinatos de LGBTs registrados pelo GGB estava em 1,05 por dia. Até então, a maior média tinha sido registrada em 2016, quando aconteceram 343 assassinatos –o equivalente a 0,95 morte por dia.
O levantamento do grupo é feito desde 1980 e é usado como referência sobre crimes relacionados a preconceito à orientação sexual contra a população LGBT no país.
Segundo Marcelo Cerqueira, do GGB, o aumento de violência ano a ano é resultado de uma série de fatores. “Temos a questão da impunidade dos crimes. Muitos não chegam nem sequer a serem instruídos com início, meio e desfecho –e falo ‘desfecho’ querendo significar assassinos presos e pagando com aplicação da lei. Outro fator é a vulnerabilidade social muito grande, o que faz com que as pessoas se tornem vítimas. E tem o aspecto cultural, e esse é o pior de todos, que é a sociedade considerar essas pessoas de segunda categoria.”
Entre as ações necessárias para frear o que o grupo chama de “homocausto” — referência ao Holocausto, assassinato em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial–, Cerqueira cobra a criação de uma lei que atue diretamente contra a homofobia. Procurado, o Ministério de Direitos Humanos afirmou à reportagem que não comentaria os dados porque o levantamento do GGB não é oficial (veja mais abaixo).
“A gente não tem muita esperança que se resolva esse número de assassinatos por falta de uma política pública para essa população e de empenho para resolver. O negócio é arrumar as malas e sair do país. O último que ficar apaga a luz”, critica Cerqueira.
“Estas mortes sempre existiram; há mais visibilidade”
Outra entidade que faz um levantamento de casos é a Rede Trans Brasil. Segundo a coordenadora de comunicação da rede, Sayonara Nogueira, desde 2008 o número de casos vem crescendo. Neste ano, já foram registrados 125 assassinatos –no ano passado inteiro foram 144.
“Houve também neste ano um aumento no número de tentativas de assassinato e de violação dos direitos humanos”, conta.
Ela não acha que as mortes estejam crescendo no país, mas vê uma maior circulação da informação e monitoramento feito pela sociedade.
“Essas mortes sempre existiram, só que está ocorrendo agora uma maior visibilidade. Nós temos algumas legislações importantes também que dão visibilidade à causa, como o uso do nome social, a permissão para que casos de violência sejam julgados dentro da Lei Maria da Penha. Tudo isso tem tido uma visibilidade maior, e essas mortes vêm aparecendo mais”, afirma.
Governo federal diz que números podem ser maiores
Procurado, o Ministério da Justiça informou ao UOL que, no âmbito federal, o tema deveria ser tratado pelo MDH (Ministério de Direitos Humanos).
O MDH afirmou à reportagem que não comentaria os dados porque o levantamento do GGB não é oficial, mas citou números do Disque Direitos Humanos, o Disque 100.
No ano passado, ele recebeu 1.876 denúncias de violências praticadas contra LGBTs. “Desses dados, a discriminação e a violência psicológica foram os casos com maior número de registros, que demonstram a necessidade de mudança de crenças e valores baseados em preconceitos que vitimizam a população LGBT”, informa.
Segundo o balanço, os casos com maior número de registros contra LGBTs são violência física, lesão corporal e maus-tratos, seguidos por homicídios.
“Dada a questão da subnotificação dos registros de violência, conforme já citado, é possível afirmar que esses números podem ser ainda maiores e sofrem influências de outras variáveis correlacionais, como raça/cor, faixa etária, classe social, região e outros”, pontua a pasta.
O MDH ainda informou que tem buscado “ações pontuais no combate à discriminação através de campanhas nacionais com o objetivo de dar visibilidade à temática LGBT e promover as discussões em relação ao preconceito e às diferenças”.
Entre os itens, o MDH assegura que tem feito interlocuções com outros ministérios e governos estaduais. “Há também diálogos feitos diretamente com a sociedade civil para planejamento de ações. Estamos construindo um Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência LGBTfobia, em parceria com os Estados e municípios, trabalho que irá transformar as diretrizes da última conferência nacional LGBT em Políticas Públicas nos campos da saúde, educação, cultura, assistência social e segurança pública”, finaliza.
Carlos Madeiro