(O Estado de S. Paulo, 06/03/2016) Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, transexuais e travestis falam sobre suas conquistas e o duplo preconceito que sofrem
Elas são mulheres, não foram feitas para apanhar e não são boas de cuspir. Neste Dia Internacional da Mulher, comemorado na terça-feira, mulheres transexuais e travestis querem o reconhecimento de que não são as malditas Genis que canta Chico Buarque. Cinco trans e travestis ouvidas pelo Estado falaram sobre o duplo preconceito que sofrem na rua, a perfeição da figura da mulher e as conquistas de importantes papéis sociais.
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Para o Conselho Federal de Psicologia, o transtorno de personalidade de gênero não é uma doença, mas uma orientação sexual, como outra qualquer, segundo explica Nelson Pedro Silva, professor de psicologia da Unesp. “É uma questão de ordem cultural e vários estudos têm apontado que há pessoas com uma subjetividade feminina em um corpo masculino e vice-versa”, diz Silva.
“Somos mulheres. Eu não estou com uma cueca debaixo do vestido. Estou com uma calcinha. Eu sou uma mulher. Um homem não passa um batom vermelho. Como me veem como um homem? Me veja como uma mulher. Travesti, mas uma mulher”, afirma Aline Marques, de 38 anos, articuladora da unidade móvel de Cidadania LGBT no Largo do Arouche, que presta apoio a vítimas de homofobia e faz exames de saúde.
Após muitas cirurgias plásticas e 21 anos de prostituição “para conseguir sobreviver” e mudar a própria história, Aline mora hoje na zona leste com o companheiro e a mãe. Ela conta, emocionada, que, após uma depressão, conseguiu o primeiro emprego aos 37 anos. “Nunca é tarde”, diz. Agora, trabalha como articuladora de dia e, à noite, comemora a possibilidade de chegar em casa e poder cozinhar, lavar roupa, assistir a novelas e conversar com a família.
Apesar de ter apoio dos pais em casa, a cabeleireira Ivy Granelli, de 22 anos, afirma que, na rua, o preconceito ainda é grande com a mulher trans, que é vista como objeto sexual. “Mulher sofre muito na rua, mas com a trans é mais agressivo porque associam com vulgaridade, com prostituição”, afirma. “Se o homem dá uma cantada e as pessoas veem, elas me julgam como se eu estivesse procurando aquilo.”
“Sempre tentaram me caracterizar como um bichinho engraçado, uma aberração. Machuca uma pessoa olhar para você e dizer ‘você nunca vai ser ninguém na vida’, ‘você é limitada’ ou ‘você é inútil’. Foi o que mais martelaram para mim”, diz a agente de saúde Ciara Pítma, de 25 anos.
Conquistas. Na última Conferência Municipal de Políticas para Mulheres, em setembro, quatro delegadas trans – entre elas, Ciara e Aline – foram eleitas pela primeira vez para representar São Paulo na edição federal do evento. “Nos emocionamos porque conseguimos incluir travestis e trans em várias situações. Para nós, foi uma conquista muito importante”, conta Aline.
Para a analista de sistemas Margot Paon de Andrade Garcia, de 30 anos, um dos reconhecimentos mais importantes como mulher trans se manifestou no trabalho. Após uma grave depressão, ela assumiu a identidade que sempre teve e ficou surpresa com o apoio que recebeu.
“Tive toda a aceitação na empresa. Quando souberam da minha transformação, fizeram até palestras de conscientização para os demais funcionários.” No setor em que trabalha, Margot é a única mulher. “Fui treinada para ser um homem e por muito tempo eu tentei, mas não consegui viver sem ser quem eu era: uma mulher.”
Foi aos 25 anos, depois de ter se mudado de Assis, no interior, para a capital, que a atriz Lorena da Cunha França, de 37 anos, decidiu abraçar a identidade feminina. Apesar de nunca ter sido reprimida pelos pais na infância ao brincar com bonecas, Lorena conta que o maior medo era que a família não a aceitasse.
“O maior alívio que senti foi quando meu pai me viu vestida como mulher pela primeira vez. Ele me abraçou com os olhos, como se dissesse que me aceitava e me amava”, conta.
Aline Marques, que hoje luta pela igualdade tanto das mulheres biológicas quanto das trans e travestis, condena a competitividade entre elas. “É um sofrimento passar por tudo isso para chegar perto da semelhança de uma mulher. Pagamos caro em cirurgia tentando chegar à perfeição de uma mulher. Porque, para mim, a mulher é perfeita.”
Cirurgias. Apenas cinco dos 27 Estados brasileiros têm hospitais habilitados para o processo transexualizador, com cirurgias para redesignação sexual, retirada ou inclusão de mama e a tireoplastia (troca da voz). Outros três Estados são equipados com ambulatórios especializados para pessoas transexuais, segundo o Ministério da Saúde.
Em 2015, foram feitos 2.423 procedimentos de transexualização, até outubro. Em 2008, quando o processo começou a ser oferecido pelo SUS, foram 101. As cirurgias de redesignação ainda são uma pequena parte dessa parcela, foram feitas só 53 no ano passado em todo o Brasil – 16 delas em São Paulo.
Para o Ministério da Saúde, o Brasil está na “vanguarda” da garantia de direitos e reconhecimento de gênero, assegurando a cobertura gratuita de saúde para as pessoas que querem mudar de sexo. Para estarem aptos às cirurgias, os pacientes precisam ter no mínimo 18 anos e passar por avaliação e acompanhamento ambulatorial com equipe multiprofissional.
Maria Amélia Veras, da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, afirma que há um movimento para que os processos de transformação corporal possam ser assegurados pelos sistemas de saúde sem a necessidade de diagnóstico médico, já que há uma movimentação global para que a transexualidade seja despatologizada. “A ideia da não conformidade entre o sexo de nascimento e a identidade de gênero autopercebida é um conceito recente.”
Desde 2012, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) deixou de considerar a transexualidade como uma patologia ou transtorno mental. “Essa nomenclatura infelizmente ainda prevalece, inclusive, no Brasil. É, inclusive, baseada nisso que o Estado brasileiro disponibiliza tratamento hormonal, psicoterápico e cirúrgico a tais pessoas”, diz Silva.
Isabela Palhares e Juliana Diógenes
Acesse no site de origem: Quando se tornar mulher é um desafio (O Estado de S. Paulo, 06/03/2016)