(O Estado de S. Paulo, 25/10/2014) A discriminação contras lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) não surgiu durante a ditadura militar. Suas origens remontam a períodos muito anteriores da história brasileira.
A homofobia e a transfobia sempre estiveram presentes nas mais diversas esferas da vida social: em discursos médico-legais que consideravam a homossexualidade uma doença; em discursos religiosos que condenavam o ato como pecado; em visões criminológicas que tratavam pessoas LGBT como um perigo social; em políticas públicas que não reconheciam a cidadania desses segmentos “desviantes”; e em valores tradicionais que desqualificavam pessoas que não se comportavam segundo padrões considerados “normais”.
Entretanto, é possível afirmar que a ditadura constituiu um marco fundamental para configurar os contornos e os deslocamentos da regulação das sexualidades e dos modos de justificação de violência contra LGBTs.
Do cruzamento entre a ditadura e as homossexualidades, como se dizia à época, surgem diversas questões. Quais foram os efeitos da ditadura no cotidiano de mulheres e homens que se recusaram a reproduzir os comportamentos hegemônicos de gênero e de sexualidade? Como essas pessoas resistiram e agenciaram essas experiências nos anos 1960, 70 e 80? Qual o papel desempenhado pelo movimento LGBT durante a transição democrática?
Não se nota uma política de Estado formalizada e tão coerente no sentido de exterminar os homossexuais, tal qual ocorreu em relação à luta armada. Porém, houve uma ideologia que justificava a cassação de direitos democráticos e liberdades públicas a partir de uma razão de Estado marcada por um viés homofóbico e transfóbico, que relacionava as homossexualidades à subversão. Assumiu-se, como visão de Estado, a representação do homossexual como nocivo, perigoso e contrário à “moral” e aos “bons costumes” da “família” brasileira, o que autorizou as violências e fez desses grupos um alvo privilegiado.
É impossível compor um quadro preciso da extensão e da gravidade dessas violações, tanto pela ausência de uma documentação sistemática da violência quanto pelas poucas denúncias existentes ou mesmo pela invisibilidade dessas vítimas.
Mas uma lista, mesmo que incompleta, impressiona: perseguição a travestis nos pontos de prostituição; “rondas” com prisões arbitrárias intensificadas pelo delegado José Wilson Richetti no governo de Paulo Maluf; censura às artes que simbolizavam de forma aberta as sexualidades dissidentes, destacando-se a escritora lésbica Cassandra Rios; expurgos de cargos públicos (como sete diplomatas cassados do Itamaraty em 1969 por “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”); difusão, pela imprensa, do preconceito contra os “desvios” para reforçar o estereótipo do “inimigo interno”; desarticulação do movimento LGBT e dos seus meios de expressão (como o jornal O Lampião da Esquina). Isso sem mencionar os casos de homofobia e de machismo, velados ou não, cometidos no interior do próprio campo da resistência à ditadura e da esquerda da época.
Houve também tolerância relativa de alguns setores às práticas homossexuais, contanto que essas se mantivessem restritas a espaços bem demarcados: carnaval, lugares isolados de sociabilidade, profissões “delicadas” ou “criativas” para homens, bem como certos lugares reservados para mulheres masculinizadas. Essa tolerância incipiente de guetos, contudo, não foi fruto da ditadura, mas de mudanças profundas vividas dentro e fora do país nos anos 1950 e 60.
Diante desse cenário, fica claro que as violações de direitos e as opressões no campo da sexualidade merecem um olhar particular do ponto de vista do trabalho de memória e justiça atualmente em curso. As vítimas da ditadura não são apenas os militantes que aderiram à resistência armada. Muitos outros setores sociais sofreram o peso do autoritarismo sobre suas subjetividades, corpos, trajetórias de vida e desejos. Esse debate precisa entrar na agenda de reflexões em torno dos 50 anos do golpe militar e de seus legados na democracia.
O Brasil bate sucessivos recordes nas taxas de violências por orientação sexual e identidade de gênero. Os índices da homofobia e da transfobia, em atos e discursos, são alarmantes: pelo menos 216 vítimas assassinadas de janeiro até setembro de 2014, segundo estimativa do Grupo Gay da Bahia.
Impossível ignorar os laços que unem essas violências a esse passado tão recente. Nomear e jogar luz sobre essa dimensão moral e sexual da repressão é uma maneira de começar a avançar no combate aos preconceitos que marcam a sociedade brasileira ainda hoje. Vivemos um momento privilegiado para traçar essa ponte entre o passado e o presente com as Comissões da Verdade. E que seja antes tarde do que nunca.
* James N. Green, professor de História Latino-Americana e Estudos Brasileiros da Brown University, e Renan Quinalha, advogado da Comissão Estadual da Verdade de SP, são organizadores do livro Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (Edufscar), a ser lançado no Rio e em São Paulo
Acesse o PDF: ‘Subversão’ LGBT, por James Green e Renan Quinalha (O Estado de S. Paulo, 25/10/2014)