(Público) Há milhares de mulheres, na sua maioria sunitas, detidas ilegalmente nas prisões iraquianas, denuncia um relatório divulgado nesta quinta-feira pela Human Rights Watch (HRW) e no qual se sublinha que as detenções e os maus-tratos infligidos às prisioneiras alimentam a tensão sectária e a violência que corrói de novo o país.
“As forças de segurança e os responsáveis iraquianos agem como se tratar brutalmente as mulheres fosse tornar o país mais seguro”, lamenta Joe Stork, vice-director da HRW para o Médio Oriente e Norte de África, explicando que a realidade demonstra o contrário: “Na verdade, estas mulheres e os seus familiares disseram-nos que enquanto as forças de segurança continuarem a maltratar pessoas na impunidade, a situação de segurança só vai piorar”.
O relatório – que se baseia em entrevistas com 27 detidas, nos testemunhos de familiares, advogados e médicos dos centros de detenção, e em documentos judiciais – revela que das 4200 mulheres detidas nas prisões iraquianas, a vasta maioria são sunitas e muitas foram detidas de forma indiscriminada, por vezes às dezenas, em retaliação a atentados ou ataques atribuídos a homens das suas famílias. Detenções feitas à luz de uma vaga lei antiterrorista aprovada em 2005 e que permite que as reclusas sejam detidas sem acusação ou condenadas apenas por pertencerem a uma família ou uma tribo, denuncia a HRW.
Nas 105 páginas de Ninguém está a salvo: Abusos contra as mulheres no sistema de justiça criminal do Iraque, a organização de direitos humanos descreve o inferno que espera as mulheres nas prisões dos ministérios do Interior e da Defesa. As detidas que entrevistou contaram ter sido agredidas a socos e pontapés, que os guardas as dependuraram de cabeça para baixo e lhes bateram nas solas dos pés. Outras falam em choques eléctricos, violações ou de terem sido ameaçadas que as violariam na frente do marido ou dos filhos. Mais do que crimes que lhes são atribuídos, os interrogatórios destinam-se a extrair confissões sobre actos que terão sido cometidos por familiares.
Numa ocasião, uma mulher que os autores do relatório iriam entrevistar chegou à sala de muletas. Condenada à morte, contou que, durante nove dias, em Março de 2012, os guardas a espancaram, lhe deram choques eléctricos e a agrediram nos pés. Em Setembro do ano passado, a mulher foi executada apesar de um tribunal de primeira instância ter anulado os crimes que lhe eram imputados depois de um relatório médico ter confirmado que tinha sido torturada.
Muitas das detidas passam meses, às vezes anos, na prisão antes de serem levadas a tribunal e, mesmo perante o juiz, os abusos persistem – a HRW diz que, na maioria dos casos que examinou, as mulheres não tiveram direito a advogado, “porque não o podiam pagar ou porque os processos foram considerados politicamente sensíveis”.
E ao calvário da prisão junta-se o estigma de ter estado presa, o que na tradicional sociedade iraquiana é visto como uma desonra. “Homens e mulheres são vítimas das graves falhas do sistema de justiça, mas as mulheres enfrentam um duplo fardo”, diz a organização.
Confrontada com este relatório, uma porta-voz do Ministério dos Direitos Humanos iraquiano afirmou que as denúncias foram “empoladas” e disse que foram detectados apenas casos “limitados” de maus-tratos a detidas, já comunicados às autoridades competentes.
Revolta favorecem radicais
O relatório dá força às denúncias da população sunita que acusa o Governo e às forças de segurança, ambos dominados pela maioria xiita, de a marginalizar. Os relatos de maus-tratos e perseguição aumentam na mesma proporção dos atentados atribuídos aos grupos jihadistas, num ciclo de violência que fez de 2013 o ano mais violento no Iraque desde 2008, quando o país saía de um sangrento conflito sectário, no rescaldo da invasão americana que, em 2003, derrubou Saddam Hussein (ele próprio um sunita que durante décadas perseguiu a população xiita).
A Reuters recorda que a libertação das mulheres era a principal reivindicação dos manifestantes que durante meses protestaram em Anbar, a grande província do Oeste onde os sunitas são maioritários. No final de Dezembro, as forças de segurança iraquianas derrubaram os acampamentos e, aproveitando a revolta da população, grupos jihadistas tomaram a cidade de Falluja e partes de Ramadi – as duas principais cidades da província, que o Exército quer recuperar com uma ofensiva que pôs em marcha no fim-de-semana passado. A ONU diz que, desde o início do ano, mais de 140 mil pessoas fugiram aos combates, naquela que é já a maior deslocação de pessoas dentro do Iraque desde 2008.
“Os abusos que documentamos estão, de muitas formas, ligados à actual crise no Iraque”, diz Joe Stork na apresentação do relatório, no qual é citado um vídeo recente em que um homem que se apresenta como líder da Al-Qaeda pergunta a uma multidão reunida em Ramadi: “O que devemos fazer quando o Exército viola as nossas mulheres? O que devemos fazer quando prendem as nossas mulheres e crianças?” Estes abusos, sublinha o responsável da HRW, “provocaram grande revolta e desconfiança entre diferentes comunidades e as forças de segurança, e todos os iraquianos estão a pagar o preço”.
Acesse o PDF: Milhares de iraquianas presas à margem da lei e vítimas de tortura (Público – 06/02/2014)