Ao menos sete em cada dez adolescentes de dez a 14 anos que engravidaram como consequência de crime de estupro foram violentadas em caráter repetitivo e por um familiar ou um parceiro íntimo.
(UOL, 29/12/2017 – acesse no site de origem)
As informações constam em estudo preliminar do Ministério da Saúde a partir de notificações contabilizadas em três bancos de dados da pasta: o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, o Sistema de Informações sobre Mortalidade e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação. O estudo completo será publicado ainda este mês.
Segundo a pesquisa, conduzida por profissionais do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e de Promoção da Saúde, do ministério, o país registrou 4.262 casos de estupro em adolescentes e que resultaram em gestações e nascimentos no período entre 2011 e 2016. O número se refere ao chamado estupro de repetição, ou seja, crimes dessa natureza praticados contra a vítima reiteradas vezes, ainda que não pelo mesmo agressor.
Desse total, 1.875 vítimas de estupros repetidos, com idades de dez a 14 anos, deram à luz. Outras 2.387 jovens de 15 a 19 anos, também vítimas de estupro reiterado, tiveram filhos após violência sexual.
Os números
De acordo com o levantamento, entre 2011 e 2016, foram notificados 3.266 estupros de adolescentes de dez a 14 anos que foram mães –o número abarca vítimas de estupros reiterados ou não. Em 68,5% dos casos (2.324), o agressor foi familiar ou parceiro íntimo. Em 72,8% dos casos (1.875), o estupro tinha caráter repetitivo.
Entre as adolescentes de 15 a 19 anos, o número de notificações foi maior: 6.201, 37,7% delas (2.418), com autor na própria família ou parceiro. O percentual de casos reiterados foi menor: 44,1% dos casos (2.387).
Dos bebês nascidos vivos de mães de dez a 14 anos com notificação de estupro entre 2011 a 2016, 53,4% iniciaram o exame pré-natal no primeiro trimestre de gestação –quando esse tipo de acompanhamento médico-obstétrico deveria se iniciar ainda antes da concepção e até o pós-parto, em um período de 45 dias após o nascimento do bebê.
Entre as mães adolescentes pesquisadas, a maior parcela delas na faixa de dez a 14 anos reside no Nordeste (37,6%) e no Sudeste (26,3%), é negra (67,5%) e solteira (74,7%). O estudo identificou 23,2% de casadas ou em união estável.
Já entre as mães adolescentes de 15 a 19 anos, residentes especialmente no Sudeste (33,1%) e no Nordeste (32,7%), negras ainda são maioria (63,3%), ainda que o percentual de solteiras seja menor (61,7%), e o de casadas ou em união estável, maior (36,8%).
“Nossa discussão é de saúde pública, não de religião”, diz consultora
Para Cheila Marina de Lima, consultora da área técnica de Vigilância de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde, e que atuou no levantamento, os números de mães adolescentes que engravidaram após estupros repetidos é chocante.
“O que se vê hoje no Brasil é um movimento de enfraquecimento do direito ao aborto legal. Sabemos que essas meninas não tiveram acesso nem à contracepção de emergência [pílula do dia seguinte, por exemplo] e nem ao aborto legal. A gente precisa voltar a discutir isso com mais vigor. O Estado tem que dar uma resposta mais adequada”, considerou.
Na avaliação da consultora, existe atualmente uma discussão conservadora na sociedade que afeta até serviços públicos que deveriam orientar as vítimas de estupro para as situações em que o aborto é a alternativa permitida e/ou indicada ao caso.
“Nossa discussão é só no âmbito da saúde pública, e não de religião A ou religião B. Mas o que se nota é que até o profissional tem resistência de dar esse tipo de orientação, e eles precisam ser sensibilizados sobre isso. Há também que se fortalecer e instrumentalizar as nossas redes de atenção e de referência a essas adolescentes, além de mobilizarem os profissionais que nelas atuam, pois os serviços de saúde são a grande porta de entrada dessas vítimas de estupro”, apontou.
A consultora do Ministério da Saúde, no entanto, ressalva: a rede de atenção à vítima de estupro não é atribuição única da saúde, “mas também dos conselhos tutelares e das delegacias da criança e do adolescente, por exemplo”. “É muito doído e muito triste ver que grande parte dessas meninas sofre violência de repetição –imagine a dor de sofrer isso em casa dia a dia sem ter a quem recorrer?”
Faltam delegacias especializadas, diz o Condepe
Integrante do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana) e referência em direitos da infância e juventude, o advogado Ariel de Castro Alves avalia que os dados do estudo demonstram “o quanto as crianças e adolescentes estão desprotegidas”.
“Boa parte das violências sexuais ocorre nos ambientes familiares e é praticada nas residências das vítimas e por pessoas que deveriam protegê-las, como pais, padrastos, padrinhos, entre outros. Em razão de a violência ocorrer em ambiente doméstico e da impunidade, é que as situações se tornam repetitivas e reiteradas”, definiu.
Alves criticou ainda a falta de delegacias especializadas de proteção de crianças e adolescentes no país. “Inclusive, São Paulo é o único Estado que não tem nenhuma dessas delegacias”, observou.
“São necessários centros de referências especializados de apoio às vítimas, com assistência social e psicológica, e também educação sexual nas escolas, visando à prevenção, além do reforço ao Programa Saúde da Família e de centros médicos de referência para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, inclusive para os casos de aborto legal”, completou.
Sobre os casos de meninas de dez a 14 anos casadas ou em união estável elencadas na pesquisa, o representante do Condepe afirmou: “Muitas vezes, as meninas de menos de 14 anos são casadas informalmente ou namoram adultos e têm filhos. Isso demonstra a necessidade de educação, prevenção e atenção social. Não adianta tratar esses casos só no âmbito policial, criminal e judicial”.
Janaina Garcia