Os primeiros minutos de 2017 ficaram marcados por um massacre que chocou o país. Em Campinas (SP), um homem invadiu a casa onde sua ex-mulher celebrava o Ano Novo com a família e começou a atirar. Ela e mais onze pessoas morreram, incluindo outras oito mulheres e o filho de ambos, de 8 anos. Em seguida, ele se matou.
(BBC Brasil, 05/01/2017 – acesse no site de origem)
Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, deixou algumas cartas e áudios para “explicar” sua atitude. Neles, chamou a ex-mulher de “vadia” por ter conseguido a guarda do filho em um processo que incluiu acusações de que ele teria abusado sexualmente da criança, condenou a Lei Maria da Penha – a qual chamou de “lei vadia da penha” -, e disse que queria “pegar o máximo de vadias da família juntas”.
A mulher teria registrado seis queixas contra ele entre 2005 e 2015 por agressão e ameaça.
“Não posso dizer que todas as mulheres são vadias! Más (sic) todas as mulheres sabem do que as vadias são capazes de fazer! (…) A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias. As mulheres sim tem medo de morrer com pouca idade. (…) Morto tbm já estou, pq não posso ficar contigo, ver vc crescer, desfrutar a vida contigo por causa de um sistema feminista e umas loucas (sic).”
Diante da atitude e da “justificativa” do assassino, muitos passaram a tratá-lo como psicopata e enxergaram o caso como algo “bizarro”, desconectado da realidade. Mas, para a filósofa Márcia Tiburi, ele não cometeu o crime sozinho.
Especialista na questão de gênero e autora de livros como As Mulheres e a Filosofia e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero, ela alerta para o papel da sociedade na barbárie. “Ele não inventou esse assassinato das mulheres sozinho. Ele pode ter atirado sozinho, mas o que ele fez é simbolicamente muito mais grave”, afirmou ela à BBC Brasil.
“A culpa é de um sistema, de um imaginário de ódio às mulheres que deixa os indivíduos descompensados.”
Veja os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil: Nas cartas que o autor da chacina deixou, há um discurso repleto de ódio contra as mulheres, chamando todas elas de “vadias”. Dos 12 mortos, 9 eram mulheres. O que isso representa?
Marcia Tiburi: Esse elemento no discurso do assassino faz parte de um contexto mais geral, a meu ver. A gente chama isso de misoginia. Esse discurso não é novo: ele só nos choca no fato de ser tão declarado e de aparecer numa maneira tão tosca.
O caráter brusco desse discurso, que tem autorização para dizer tudo isso sem preocupação, isso é o que o torna mais chocante. Mas se você for ler discursos mais rebuscados na mídia tradicional, na Bíblia, nos textos clássicos da História, você encontra o mesmo tipo de conteúdo, a mesma estrutura simbólica de ódio às mulheres. Como há um ódio histórico aos judeus, aos negros.
O ódio no contexto do machismo é estrutural. Não tem machismo sem ódio. Todo machismo carrega em si um afeto odiento. Seja como repulsa, como inveja, como necessidade de fazer calar.
BBC Brasil: Muitos estão tratando o assassino como psicopata. O que acha disso?
Tiburi: Ele poderia ser, de fato, a partir de um ponto de vista psiquiátrico, medido como um psicopata. Mas não temos esse registro comprovado. A gente tem que tomar muito cuidado com isso, com esse diagnóstico que surge no senso comum.
O importante aqui é que do ponto de vista sociológico, filosófico, a gente não vive sozinho, a gente tem influência do meio em que vivemos. Eu diria que esse cidadão seria, no nível do senso comum, apenas um pobre coitado que realiza algo que é da ordem do desejo coletivo. É um desejo forjado por uma estrutura social machista e que nesse momento perde seu freio.
Um dos exemplos que perde o freio social, a noção da lei. Ele confronta a lei de uma maneira jocosa, interpreta a lei à luz da sua própria ignorância e usa essa ignorância como um aval, uma justificativa.
Mas ele não inventou essa matança sozinho. Ele pode ter maquinado essa chacina sozinho, mas não inventou esse assassinato das mulheres sozinho. Ele pode ter atirado sozinho, mas o que ele fez é simbolicamente muito mais grave.
Podemos analisar esse lugar do encontro entre a atitude particular e um contexto percebendo a semelhança entre o discurso que ele profere e o discurso que a gente vê no senso comum. Esse indivíduo pensa a partir do senso comum. É importante perceber que as ideias não são nossas, eu tenho ideias com relação ao mundo, eu absorvo os conceitos do mundo, as ideias do mundo, e nós vivemos em um mundo machista, misógino.
Ele, em que pese sua culpa, é mais um cidadão que foi destruído pelo machismo. Não é mais vítima do que as vítimas que ele causou, mas ele é também vítima de um sistema dos quais todos nós somos vítimas. A gente não deve colocar a culpa no indivíduo, a culpa é de um sistema de um imaginário de ódio às mulheres que deixa os indivíduos descompensados.
Esse cidadão rompeu com o bom senso, com a racionalidade, mas ele estava buscando a compensação.
Eu, como professora de Filosofia, acho que as pessoas não devem nesse momento achar que elas não têm nada a ver com isso. Elas têm algo a ver com isso, nós todos temos, porque todos nós participamos de uma cultura assim. Onde nós como cidadãos estamos errando? Esse cidadão pode fazer o que fez? Ele achou que estava acima da lei.
BBC Brasil: Muitas pessoas comentaram que o autor da chacina seria uma personificação dos comentários que se lê nas redes sociais – o discurso dele traz esses elementos de ódio que encontramos nas redes. Qual é o perigo de tornar “naturais” esses discursos?
Tiburi: A naturalização faz parte da história da cultura. O feminismo irrita porque ele é um questionamento do machismo naturalizado, estrutural. Então todo o questionamento relativo àquilo que foi naturalizado incomoda.
As naturalizações servem pra acobertar alguma coisa. Nesse caso, um sistema de privilégios dos homens. Nesse sistema de privilégios, os homens não querem olhar para uma mulher como alguém de igual para igual. Então esse indivíduo assassino olhava para mãe do seu filho como uma pessoa que não tinha direito nenhum, a reduzia a uma vadia. Ele se colocava como cidadão de bem, correto e, de tão correto, acima da lei.
A grande questão pra se colocar hoje é: como nós chegamos a essa ideia de que nós podemos fazer tudo o que a gente achar certo? Ele rebaixa a cidadã, mas rebaixa (também) a lei.
Mas ele não inventou isso sozinho. Ele é uma evidenciação, uma metonímia da sociedade nesse momento. É a parte que fala pelo todo.