No Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, o Brasil não tem muito a comemorar: é um dos países com os maiores índices de assassinatos de mulheres do mundo. Apesar de avanços legislativos recentes e políticas públicas de proteção, muito resta a ser feito em relação à prevenção, de acordo com especialistas.
(ONU Brasil, 25/11/2016 – acesse no site de origem)
Enquanto o machismo continuar dominando diferentes esferas da sociedade brasileira e o tema da igualdade de gênero não fizer parte do currículo escolar, o ciclo de violência tende a se prolongar ao longo das próximas gerações, afirmaram.
No Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, o Brasil não tem muito a comemorar: é um dos países com os maiores índices de assassinatos de mulheres do mundo. Apesar de avanços legislativos recentes e políticas públicas de proteção, muito resta a ser feito em relação à prevenção, de acordo com especialistas.
Para elas, enquanto o machismo continuar dominando diferentes esferas da sociedade brasileira e o tema da igualdade de gênero não fizer parte do currículo escolar, o ciclo de violência tende a se prolongar ao longo das próximas gerações.
Segundo o Mapa da Violência de 2015, o Brasil tem uma taxa de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres, ocupando a quinta posição em um ranking de 83 nações. Além disso, o país registrou no ano passado mais de 45 mil estupros — o equivalente a cinco a cada hora — de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Os dados constam no Dossiê Violência contra as Mulheres da Agência Patrícia Galvão (clique aqui).
A principal causa desses altos índices de violência, segundo Leila Barsted, advogada que ajudou na elaboração da Lei Maria da Penha, é o fato de a sociedade brasileira ainda desvalorizar as mulheres, tanto social como economicamente. Elas são discriminadas no mercado de trabalho, ocupam cargos mais baixos e ganham em média 30% menos que os homens para exercer as mesmas funções.
“Essa desvalorização está na base da violência: das agressões psicológicas e sexuais até o feminicídio, expressão mais grave de toda uma cultura de discriminação”, diz Leila, representante brasileira no mecanismo de acompanhamento da implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, de 1994) da Organização de Estados Americanos (OEA).
Os estereótipos sexuais também contribuem para a violência, na medida em que disseminam a ideia de que o corpo da mulher pertence ao homem. Uma face preocupante dessa crença são as práticas frequentes de culpabilização da vítima — quando há questionamentos sobre a roupa ou o comportamento da mulher alvo de violência.
“Quantos preconceitos uma mulher precisa superar ao longo da vida?” @CamilaPitanga @ONUMulheresBR #ElesPorElas #heforshe pic.twitter.com/Nz7Sc9xxXZ
— ElesPorElas (@ElesPorElas) 21 de novembro de 2016
O cenário se completa no Brasil com o forte preconceito racial, que coloca as mulheres negras em uma situação de dupla discriminação. De acordo com o Mapa da Violência de 2015, enquanto a taxa de assassinatos de mulheres brancas teve queda de 9,8% entre 2003 e 2013, entre as mulheres negras houve avanço de 54,2% no mesmo período.
Para a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, a mistura de sexismo com racismo faz com que o feminicídio seja ainda mais elevado no Brasil na comparação com outros países latino-americanos.
“As mulheres negras trabalham em empregos mais precários, com menores salários, têm menos acesso à educação e nenhuma representação política. Elas já vivenciam uma violência muito maior e, ao mesmo tempo, quando tentam acessar a Justiça, esbarram na violência institucional”, completa Leila.
Educação como prevenção
Na opinião das especialistas, a principal política de prevenção à violência contra a mulher é o investimento em educação, com a inclusão de debates sobre a igualdade de gênero nos currículos escolares. Isso faria com que as próximas gerações desconstruíssem estereótipos tão presentes na sociedade brasileira.
“Existem esporadicamente campanhas, mas, neste ano principalmente, houve movimento forte de setores religiosos contra planos de educação nacional, estadual e municipal com qualquer menção à relação de gênero”, avalia a defensora pública e professora de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Mônica de Melo.
“Quem estuda violência contra a mulher sabe que a base dessa violência está na discriminação em relação ao gênero nessas relações desiguais. Tirar isso do âmbito da educação básica e fundamental não está prevenindo a violência. Isso é algo que deve ser discutido na escola, desde a primeira formação, algo que o Estado tem que fazer”, enfatiza a especialista.
A própria convenção da OEA sobre o tema prevê uma educação igualitária que discuta as desigualdades de gênero como forma de prevenção à violência contra a mulher, afirma. “O Brasil, nesse ponto, está descumprindo a convenção. Não dá para pensar prevenção se não falarmos de educação de meninos e meninas para a igualdade de gênero”.
Outra forma de evitar a violência é garantir os direitos das mulheres, entre eles o direito à maior representação política e à igualdade salarial, na opinião de Leila Barsted. “Se não deflagrarmos isso, realmente não basta criar delegacias e juizados, porque o crime vai continuar acontecendo”.
“Quando um em cada três brasileiros diz que mulher que não se dá ao respeito merece ser estuprada, podemos concluir que a sociedade brasileira falhou em educar sua população”, alerta a antropóloga e pesquisadora especializada em estudos de gênero Beatriz Accioly. “As leis não funcionam sozinhas. As pessoas é que colocam em prática as normas e os protocolos. Temos uma naturalização da violência contra a mulher”.
O papel das redes sociais
Recentes casos de estupros coletivos chocaram a opinião pública brasileira após repercussão nas redes sociais. Um deles, de uma menina de 16 anos violentada na zona oeste do Rio de Janeiro, gerou ampla mobilização online, que acabou levando luz à banalização da violência contra a mulher e às falhas do atendimento às vítimas de violência sexual no país.
Na opinião de Mônica de Melo, as redes sociais e as novas tecnologias criaram maiores possibilidades de denúncia e mais visibilidade para esses crimes. “Eram casos que já aconteciam, mas que ficavam escondidos. Hoje, todo mundo que tem smartphone pode filmar, usar a tecnologia de forma a denunciar”, declara.
No caso da adolescente no Rio, o crime foi descoberto após os próprios agressores compartilharem os vídeos do estupro, como forma de se vangloriar. As cenas acabaram servindo como provas e também causaram uma hiperexposição da vítima, lembra Beatriz Accioly. “Esses rapazes acharam que poderiam fazer aquilo, colocar na Internet e ninguém ficar sabendo. É assustador como isso acontece”, analisa.
Para Leila Barsted, se por um lado as redes podem ser utilizadas para denunciar, por outro também são veículos para manifestações sexistas e discriminatórias. Segundo ela, para ser eficaz o protesto precisa ocupar os espaços públicos. “Não basta ficar nas redes. É preciso ganhar as ruas”, diz, lembrando a mobilização de mulheres argentinas após o estupro e morte de uma jovem no país.
Como cobrar políticas de igualdade de gênero https://t.co/diz0RbohRb #NiUnaMenos #VivasNosQueremos #NosotrasParamos pic.twitter.com/wLRNuFJe0N
— Cidade 50-50 (@Cidade5050) 19 de outubro de 2016
Por mais que a percepção social sobre os estupros coletivos tenha aumentado nos últimos anos com os casos que ganharam repercussão na Internet, grande parte da violência contra a mulher está concentrada no ambiente doméstico.
No primeiro semestre de 2015, dos mais de 360 mil atendimentos feitos pela Central de Atendimento à Mulher (180), 32 mil referiam-se a atos de violência. Desse total, 52% eram relatos de violência física e mais de 70% envolviam agressores com algum vínculo afetivo com a vítima, sejam familiares, companheiros ou ex-companheiros.
Segundo o Mapa da Violência de 2015, dos quase 5 mil assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. O estudo indicou que a residência da vítima aparece como local do assassinato em 27,1% dos casos, o que aponta a casa como local de alto risco de homicídio para as mulheres.
“O grande espaço de violência contra as mulheres é onde ela imaginaria que estaria protegida, nas relações familiares”, diz Leila Barsted. “Existe toda uma cultura patriarcal no mundo, que vê a mulher de uma forma inferior e, por isso, acha que tem ‘direito’ de agredir ou de ser violento”, completa Mônica.
Avanços recentes
O cenário brasileiro é estarrecedor no que se refere à prevenção, mas em relação à proteção das vítimas quando a violência já foi cometida, houve avanços no país nos últimos anos, de acordo com as especialistas.
Legislações como a Lei Maria da Penha, de 2006, e da Lei do Femincídio, de 2015, são consideradas as melhores do mundo no tema. Outro impulso foi o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, de 2007, um acordo federativo entre governos federal, estaduais e municipais que consolida ações de proteção.
A criação de mais delegacias da mulher, especialmente na região Sudeste, do disque-denúncia e de programas como “Viver sem Violência” — que integra serviços de diferentes setores — e “Casa da Mulher Brasileira” — espaços de acolhimento às mulheres — também são apontados como iniciativas positivas.
Atualmente, há uma preocupação sobre o futuro dessas políticas públicas, uma vez que a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres perdeu no ano passado o status de ministério. Segundo as especialistas, isso significa menor poder orçamentário e de diálogo com as demais pastas do governo federal.
Ainda é necessário melhorar o atendimento às vítimas de violência, ampliando a interiorização dos serviços de proteção, cujo avanço se deu principalmente nos grandes centros urbanos. Outro ponto-chave é capacitar autoridades policiais, judiciais e servidores públicos sob uma perspectiva de gênero.
“Se não houver preparo da polícia, de quem vai julgar, para entender como se dá essa violência específica, será uma tragédia”, diz Mônica de Melo. “Pode discriminar mais ainda a mulher dentro do processo judicial e muitas vezes absolver o autor da agressão”.
Nesse sentido, a ONU Mulheres publicou em abril, em parceria com o governo brasileiro e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), as “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios”.
O documento contém recomendações para a revisão dos procedimentos de perícia, polícia, saúde e Justiça que lidam com ocorrências de feminicídio. O objetivo é adequar a resposta de indivíduos e instituições aos assassinatos de mulheres, a fim de assegurar os direitos das vítimas à justiça, à verdade e à memória.
Mas para além da proteção policial e judicial, as mulheres precisam que a sociedade como um todo se manifeste contra a violência de gênero, afirma Leila Barsted. “O Estado não pode colocar um policial em cada porta. É importante que a sociedade se manifeste e crie redes sociais de solidariedade”, afirma.