Crise econômica freia denúncias de assédio sexual no Brasil

28 de agosto, 2017

Uma auxiliar de escritório apalpada pelo chefe numa reunião após repelir suas investidas. Uma balconista assediada após ser levada até o fundo da loja pelos patrões. Uma produtora de televisão provocada diariamente pelos superiores para mostrar os peitos.

(Folha de S.Paulo, 28/082017 – acesse no site de origem)

Os três casos foram relatados à Folha e têm algo em comum —nenhum foi denunciado pelas vítimas, que tiveram medo de perder o emprego ou sofrer violência ainda maior.

O número de denúncias de assédio sexual no trabalho e ações na Justiça por esse motivo, que vinha crescendo com a expansão do movimento feminista no país nos últimos anos, perdeu força com a recessão e o desemprego.

Dados do Ministério Público do Trabalho mostram que 2015 representou uma interrupção num movimento de alta que vinha sendo registrado desde 2012 no volume de denúncias, estimuladas por campanhas de conscientização do órgão sobre o assédio.

De 146 casos registrados em 2012, o número de denúncias aumentou todos os anos até atingir 250 em 2015 —ano em que as demissões no setor formal da economia superaram as contratações em 1,5 milhão de vagas, segundo o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados).

Em 2016, que marcou o segundo pior saldo negativo do emprego na história —com 1,3 milhão de vagas perdidas— o número de denúncias de assédio sexual se estagnou em 248. Neste ano, foram 144 até julho.

A auxiliar de escritório ouvida pela Folha, que trabalha na área de educação, disse ter sido perseguida por um gerente após se recusar a ter relações sexuais com ele. Ele a chamava para sua sala com o pretexto de discutir trabalho, tocava nos seus seios e a intimidava. Às vezes ia até sua mesa e esfregava o pênis nela.

A produtora de TV relatou à reportagem que era assediada todo dia por um chefe que fazia comentários sobre seus peitos e insinuava que ela deveria transar com ele. O assédio era feito em público, e passava por brincadeira.

O procurador Ramon Bezerra dos Santos, do Ministério Público do Trabalho, afirma que é muito difícil apurar um caso de assédio sexual no trabalho. “O trabalhador que presencia essas situações muitas vezes pensa que vai prejudicar o patrão e pode perder o emprego se falar”, diz.

As ações movidas pelo MPT, com base na apuração das denúncias das vítimas, têm como objetivo responsabilizar a empresa pelo assédio. Empregadores condenados têm que pagar indenização às mulheres e assinar termos de ajuste de conduta.

Para responsabilizar o agressor, as vítimas devem ir à Justiça comum cobrar danos morais, ou denunciar o crime à polícia. Se o assédio ocorre em órgão público, o caminho é um processo administrativo.

O assédio sexual só é crime no Brasil quando acontece no ambiente de trabalho. É definido como “constranger alguém” para “obter vantagem ou favorecimento sexual”, aproveitando-se da condição de superior hierárquico.

É o que relata ter sofrido Viviane Magalhães, 45. Ela começou a trabalhar cedo, com cerca de 15 anos, e conta que foi assediada no segundo emprego, uma loja de roupas no bairro onde morava. Magalhães afirma ter sido tocada pelos três donos da loja.

“Eles chegavam na manha. ‘Senta aqui, vamos conversar.’ De repente, pegavam na sua mão. De repente, tocavam. Você se assustava”, diz. “Descobri que as outras também eram assediadas. O que me impressiona é a nossa inércia para lidar com a situação.” Ouça seu relato:

 

Como outros crimes de violência sexual contra a mulher, o assédio sexual no trabalho é subnotificado. No Estado de São Paulo, foram registrados apenas 159 boletins de ocorrência até julho. Em todo o ano de 2016, foram 267.

Segundo o Ministério Público do Trabalho, não há setor de atividade econômica que concentre número maior de casos. O problema é pulverizado, dizem os procuradores.

“O que mais me enojava, me causava arrepios, era quando eu estava no balcão da loja e ele vinha por trás. Sentia a respiração dele no meu ouvido, o toque de passar atrás de mim”, diz C.V., sobre o dono da joalheria em que trabalhava. “Aquilo me fazia sentir um lixo. Era o chefe, não dava para empurrar, eu tentava ir para a frente.” Assim que se casou, ela foi demitida.

MEDO DE DENUNCIAR

Na hora de denunciar o assédio no ambiente de trabalho, é difícil superar o medo de perder o emprego ou ficar estigmatizada, afirmam as vítimas e ativistas feministas.

“Sinais de uma relação belicosa com a empresa são sempre um obstáculo, e quem vai julgar isso são os homens, porque a alta liderança não é feminina”, diz Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades. “Para mulheres negras, é ainda pior.”

Marina Ruzzi, advogada especializada em violência contra a mulher, a “precarização dos vínculos trabalhistas” explica a diminuição das denúncias de assédio sexual.

“Já fui procurada por mulheres que não tinham carteira assinada e não podiam buscar a Justiça do Trabalho”, explica. “Se a mulher trabalha como pessoa jurídica, tem que acionar a Justiça cível pedindo danos morais, o que é mais difícil de caracterizar que assédio sexual.”

Vítima relata à Folha que sofreu assédio sexual

Vítima relata à Folha que sofreu assédio sexual (Foto: Bruno Santos/Folhapress)

Para o procurador Bezerra dos Santos, a interrupção da tendência de aumento do número de denúncias vai na contramão do movimento de conscientização feito nos últimos anos. “Na verdade, deveria ter aumentado, e não diminuído, porque agora as pessoas estão mais esclarecidas”, diz.

Dentre as denúncias, sempre foi baixo o volume que desencadeia ações, inferior a 10% dos casos, segundo ele.

“Mulheres e homens deixaram de entender que violência é só porrada, estupro e feminicídio. A puxada de braço, a cantada no trabalho, tudo isso começou a ser lido como violência”, diz a escritora Antonia Pellegrino, uma das criadoras do blog #AgoraÉQueSãoElas, da Folha.

“Isso é fruto direto da pauta feminista, de debates que cresceram nos últimos anos, marcadamente a partir de 2011, com a marcha das vadias [movimento que surgiu no Canadá pelo fim da culpabilização de vítimas de estupro]. A campanha do ‘Chega de Fiu Fiu” [iniciativa criada para combater o assédio sexual sofrido pelas mulheres em locais públicos] também é fundamental”, ela afirma.

FACULDADES

A mudança cultural se manifestou também no surgimento de coletivos feministas em faculdades onde a presença masculina é tradicionalmente predominante.

Leticia Kanegae, aluna da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo, responsável por coordenar a participação dos alunos em projetos que procuram promover a diversidade na instituição de ensino, diz que a noção de ética na universidade tem evoluído. “Antes, o código de conduta dos estudantes só abordava temas ligados a cola”, afirma.

Em sua experiência como estagiária, ela diz ter percebido como são recorrentes declarações machistas e de banalização da palavra estupro.

“Quando dá errado uma programação, eles dizem que foram estuprados pela máquina. Quando falam palavrão, pedem desculpa para as mulheres que estão no mesmo ambiente”, afirma Kanegae. “Parece que a gente precisa pedir licença para estar no escritório.”

Joana Cunha e Natália Portinari

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