(Folha de S.Paulo, 04/08/2016) A primeira foi espancada com um cabo de vassoura, a segunda foi atirada na cama e esganada, a terceira recebeu ameaças de morte por ter terminado o relacionamento e a quarta foi pisada pelo ex.
Os agressores das mulheres acima foram julgados na semana passada na vara de violência doméstica da zona oeste de São Paulo –que atende também bairros da zona norte e da zona sul– pela juíza Tatiane Moreira Lima.
No ano em que a Lei Maria da Penha faz dez anos, é a primeira vez que se traça o perfil da paulistana vítima de violência doméstica, mesmo que restrito a uma região. Os resultados da pesquisa, embora parciais, já dão uma ideia da realidade da vara: 59% das vítimas que vão à Justiça são brancas (36% pardas e 5% negras), e 55% têm escolaridade mais alta.
Para a juíza, essas histórias de agressão podem revelar algo a mais. Por exemplo, a primeira vítima citada é parda e tem o fundamental completo, a segunda é branca e fez faculdade, a terceira, também branca, concluiu o ensino fundamental, e a última, parda, estudou até o ensino médio.
Foi coletando dados de cor de pele e escolaridade que ela descobriu que as mulheres que mais acessam a Justiça na região atendida pela vara depois de sofrerem violência doméstica são as brancas e as mais instruídas. “Trabalhar nos casos concretos sem saber o geral me angustiava. No ano passado, fiz 805 audiências sem conhecer o perfil dessa mulher. Tem aquela coisa de que a maioria é negra e analfabeta, mas a gente não via isso.”
A juíza Tatiane Moreira Lima foi feita refém neste ano no fórum (veja vídeo abaixo) por um homem acusado de ameaçar a ex, ela iniciou o perfil antes do episódio. A juíza examinou 1.300 boletins de ocorrência dos processos que estavam abertos em janeiro e fevereiro deste ano na vara em que atua.
A maioria (56%), pelo levantamento, não pede medida protetiva. Tatiane também tem analisado endereço, idade e relação de parentesco da vítima com seu agressor.
“Esses dados vão ser georreferenciados para saber se, nos locais com mais denúncias, existem mais ou menos serviços de saúde. Elas passam primeiro pelos serviços e se empoderam ou vão à Justiça por que naquela região não tem serviço?”, questiona.
Ela não sabe ainda o que vai encontrar. A pesquisa é parte de seu mestrado em medicina preventiva na USP, e os resultados sairão em 2017. A ideia é, futuramente, estender essa análise para todas as sete varas da capital.
ESCOLARIDADE
Os dados de escolaridade das agredidas que vão à Justiça da zona oeste contrastam com a realidade do local. Segundo o IBGE, 58% das mulheres que vivem nas áreas atendidas pela vara da juíza (que inclui bairros da zona norte, como Perus, e da sul, como Vila Andrade) têm, no máximo, o médio incompleto. A parcela de ensino médio completo e superior incompleto ou concluído é de 42%.
Pesquisa semelhante feita pelo Grupo Asa Branca de Criminologia em 168 processos criminais na 1ª vara de violência doméstica do Recife revela o oposto: lá, 47% das denúncias são feitas pela parte menos escolarizada, e 40%, pela com maior instrução.
“Aqui, as mulheres que chegam ao juizado têm perfil socioeconômico baixo”, diz Marília Montenegro, professora da federal de Pernambuco e pesquisadora do grupo.
Para ela, a ida à Justiça depende da disponibilidade de serviços. “Se a delegacia está em local com perspectiva melhor, quem demanda o serviço são as mulheres de lá.” No Recife, diz, a delegacia da mulher fica em bairro pobre.
No Rio, as que mais denunciam também são as de pouca instrução, segundo a professora de direito Débora Ferreira, também do Asa Branca. Ela analisou, no mestrado, o perfil das agredidas na 5ª vara de violência doméstica da capital fluminense.
Para ela, quanto mais frequentes notícias como a da atriz Luiza Brunet, que acusou o ex de agressão, e do estímulo à denúncia na mídia, maior a busca das mulheres mais esclarecidas à Justiça.
Coorientador de Débora, o professor da UFRJ Geraldo Prado diz que as mulheres de classes altas têm mais vergonha de denunciar, mas podem estar sendo encorajadas pelo modo como a delegacia está inserida na comunidade.
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AUDIÊNCIA COM AGRESSOR
No final deste mês, a juíza Tatiane Moreira Lima irá prestar depoimento sobre a agressão que sofreu em março deste ano, quando foi feita refém dentro do fórum do Butantã, na zona oeste de São Paulo.
A audiência será no próximo dia 25, na 5ª Vara Criminal da Barra Funda, onde também estará o homem que molhou o chão de sua sala com solventes, derrubou-a sobre o material e ameaçou, com um isqueiro, atear fogo em seu corpo. A polícia conseguiu segurá-lo antes disso.
A magistrada já decidiu: não vai depor na frente do motorista Alfredo José dos Santos, 36. “Eu não gostaria de reencontrá-lo, por ter sido um processo difícil para mim, e até para me preservar”, afirma a juíza.
Alfredo é acusado de ameaçar a ex-companheira, mãe de seu filho. No dia em que decidiu entrar no fórum com garrafas cheias de material inflamável, a juíza da vara de violência doméstica convocara uma testemunha do seu caso. Ele chegou a colocar fogo numa escada do prédio.
Ao imobilizar Tatiane, o motorista obrigou-a a dizer várias vezes que ele era inocente e gravou a agressão no celular. Alfredo se dizia injustiçado pelas autoridades e acusava a ex de não deixá-lo ver o filho. Segundo seu advogado, Marcello Múccio, o motorista agiu motivado por “forte emoção”. No fim deste mês, se a Justiça entender que ele cometeu um crime doloso contra a vida, o caso contra a juíza poderá ir a júri popular.
Alfredo também será ouvido na próxima semana no caso de ameaça à ex-companheira, mas desta vez por uma outra juíza. Para Tatiane, sua relação com vítimas de agressão que chegam até ela mudou após o episódio.
“Você sente um pouco na pele o que elas sentem. Todo o percurso que elas percorreram, eu também percorri. Fui parar no IML, também fui atendida e fiz exame. Você conhece o local físico e fica mais próxima das vítimas. Não tem como não ficar”, conta.
Para ela, uma diferença de seu caso com os das mulheres que sofrem violência doméstica está na proteção que teve no fórum. “Muitas vezes elas [vítimas] são agredidas e não tem policial por perto. Eu tinha 15 policiais aqui. Não fiquei com estresse pós-traumático nem nada porque eu me sentia protegida de certa forma. Elas não. Elas estão sozinhas dentro de casa com uma pessoa que faz isso sempre”, afirma a magistrada.
Estêvão Bertoni
Acesse o PDF: Em São Paulo, mulher escolarizada denuncia mais violência doméstica (Folha de S.Paulo, 04/08/2016)