“Entendo a decisão do juiz, mas meu corpo é o que?”, questiona vítima de assédio em ônibus

31 de agosto, 2017

Cíntia Souza (23), uma das vítimas de violência sexual em transporte coletivo, na Avenida Paulista, afirma que a Justiça deixou a desejar. O caso aconteceu na tarde de terça-feira (29), quando o auxiliar de serviços gerais, Diego Ferreira Novais (27), ejaculou no pescoço dela dentro do ônibus.

(Justificando, 31/08/2017 – acesse no site de origem)

Ao Justificando, a vítima contou que estava distraída, mexendo no celular, quando sentiu a ejaculação no ombro e pescoço. “Tinha um lugar vago do meu lado no ônibus, que ele [Diego Ferreira Novais] poderia muito bem ter sentado. Tinha também um outro lugar do lado da senhora que foi minha testemunha. Ele fez isso comigo porque já estava mal intencionado”, diz.

Eu olhei para ele, ele continuou se masturbando com a maior cara de prazer (…) Ele usou meu corpo para o prazer e isso não é justo”, desabafa Cíntia. E continua: “tô triste e meu psicológico está a mil”.

O episódio aconteceu por volta das 12h30, horário que a vítima costuma se deslocar do prédio que trabalha – e está em reformas – para outro. Cíntia relatou que, após seus gritos, o motorista do ônibus fechou as portas do coletivo para evitar que o agressor fugisse e a polícia foi acionada logo em seguida. De acordo com ela, a PM seguiu o procedimento padrão, ainda que a delegada tenha dado a entender que o homem não permaneceria preso.

Diego permaneceu menos de 24 horas preso, porque o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) entendeu que não era necessária a manutenção da prisão. A decisão, assinada pelo juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, destaca que não houve “constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus surpreendida pela ejaculação do indiciado”.

Cíntia afirma entender que “a colocação do juiz do termo ‘constrangimento’ com o sentido de coação” e questiona se não poderia ser levado em consideração o atentado ao pudor ou danos morais. “Meu corpo é o que? (…) Da parte da polícia e Justiça eu não tive e não estou tendo orientação até agora em relação a hospitais, assistente social e psicólogos”, conta.

Leia aqui a decisão do TJ-SP na íntegra.

Divergências

A decisão do juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto foi amplamente debatida pela comunidade jurídica, dividindo opiniões acerca de sua legalidade. De acordo com a advogada Carolina Gerassi, atuante em direitos humanos, “a vítima foi surpreendida pelo ato praticado contra ela unilateralmente pelo autor. Não houve violência ou grave ameaça que fizesse com que ela permitisse tal conduta, salvo a violência inequívoca, mas que é inerente ao ato”.

“Se a conduta descrita no auto de prisão em flagrante não se enquadra perfeitamente àquela prevista em crime apenado com prisão em regime fechado, a prisão preventiva se torna desproporcional”, explica Carolina sobre a decisão.

Ainda assim, a advogada chama a atenção para a frequência com que casos como esses acontecem no dia a dia. “Por outro lado, não se pode perder de vista que a classificação desses fatos em outros tipos penais mais brandos (como ato obsceno ou importunação ofensiva ao pudor) constitui afronta à dignidade de todas as mulheres, haja vista da inegável frequência com que tais situações ocorrem, bem como da motivação misógina que confere uma espécie de ‘permissivo social’, entretanto não se pode rifar princípios constitucionais penais para tentar reverter um problema social endêmico”, explica.

E continua: “há uma lacuna nos crimes contra a liberdade e dignidade sexuais que permite a banalização dessa modalidade tão corriqueira, não por isso sem gravidade, de violência de gênero”.

A especialista em Direito Penal e Processual Penal, Maíra Zapater, questiona o entendimento de violência. “Nesse caso, ele ejacula no pescoço dela, eu interpreto isso como sendo um ato de natureza sexual e libidinosa, praticado entre duas pessoas sendo que uma não consentiu. Então se não teve esse consentimento, teve constrangimento no sentido de obrigar, de constranger a moça a participar desse ato”.

Como dizer que esse ato não é violento? Se a gente pensar que uma ‘cusparada’ no rosto configura violência, pra configurar injúria real, como é que o rapaz ejacular na moça não configura violência?, indaga Maíra.

No mesmo sentido, Paulo Iotti, advogado membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS)sintetiza o ocorrido. “Se ejacular em alguém contra a sua vontade não for entendido como forma de ‘violência’, quase nada o será. Desnecessário recorrer a qualquer ‘interpretação extensiva criminalizadora’ para tanto.”

Outros casos

Dois dias antes do caso de Cíntia, no domingo (27), a escritora Clara Averbuck  denunciou nas redes sociais ter sido vítima de estupro, sendo o agressor um motorista da Uber. A empresa afirmou que baniu o homem do cadastro de colaboradores.

Já na quarta-feira (30), outra mulher relatou que teve os seios apalpados por um homem que estava ao seu lado em um ônibus na Avenida Paulista, por volta das 13h30. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) o homem, de 48 anos, foi detido por importunação ofensiva ao pudor e após assinar um termo circunstanciado e foi liberado.

Campanha do governo

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) anunciou, coincidentemente, na terça-feira (29) uma parceria com empresas públicas e particulares de transporte coletivo para tentar diminuir os casos de assédio. A intenção, segundo o TJ é “apoiar as vítimas para que elas se sintam seguras e acolhidas para denunciar o abuso e, por outro lado, os abusadores se sintam constrangidos em continuar a praticá-lo”.

De acordo com Secretaria de Segurança Pública (SSP), no início do ano, a instituição adotou um Protocolo Único de Atendimento que estabelece um padrão de atendimento nos casos de violência contra a mulher, seja física ou sexual, para melhor acolher as vítimas.

Fernanda Valente e Hysabella Conrado

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