Como na ficção, homens podem, sim, deixar de ser agressores
(Marie Claire, 21/05/2018 – acesse no site de origem)
Não escondo que adoro uma novela, faz parte da cultura brasileira, assim como o futebol, o carnaval. Quem como eu, não se lembra da viúva Porcina, da Odete Roitman, da Carminha? Agora mais um personagem não me sai da cabeça: GAEL. A Novela da Globo mostrou a redenção de um agressor de mulheres na ficção. Vou contar o que acontece na vida real.
“Não chama ela de vagabunda, não!!! Não na minha frente! Ela vai entrar, pegar as coisas dela e você vai ficar aqui comigo”. Parece fala de mocinho, mas quem diz isso é Gael, personagem de Sergio Guizé em O Outro Lado do Paraíso, que acabou sexta-feira retrasada, dia 11 de maio. Se você perdeu algum capítulo dessa novela, vou resumir aqui sem medo de dar spoiler: Gael começa apaixonado, mas demonstra ser um abusador. Mesclando ciúmes, paixão e posse, comportamento típico de homens abusivos para confundir ainda mais as mulheres, ele estupra a esposa na lua de mel, controla suas amizades, suas roupas, seu celular, sua vida financeira, a isola do mundo, a agride física e psicologicamente, a faz comer o pão que o diabo amassou.
Mais tarde se arrepende, pede desculpas, faz juras de amor. São várias idas e vindas, o que a faz passar, aos olhos das outras pessoas, como a louca, a bipolar. E ele, um verdadeiro sedutor social; na realidade, um vilão de marca maior. Mas, depois de longos meses e um “tratamento espiritual”, ele se redime, faz as pazes com a ex-mulher e busca uma nova vida. É possível?
No Rio de Janeiro, Gael salva uma mulher vítima de violência doméstica e se torna seu protetor. Mais que isso: de frente para a praia, com musiquinha ao fundo, os dois se dão a chance de um novo amor. “Quando disse que conhecia seu ex-marido estava falando a verdade. Eu era assim. Mas eu mudei”, conta o (agora) mocinho arrependido.
Na vida real não tem musiquinha com a voz da Roberta Campos e nem cenário paradisíaco, mas há mudança sim. Gael não é regra mas também não é exceção. O projeto que desenvolvi, Tempo de Despertar, atende homens que respondem a processos por violência doméstica. Em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo onde tudo começou, em 2014, 80 homens participaram de dez encontros quinzenais e, ao final, conseguiram redução de sua pena. Mas o resultado foi além: apenas 2 deles voltaram a cometer violência contra a mulher. Ou melhor: 78 mulheres pararam de sofrer, pelo menos, na mão desse homem (você sabia que isso significa um ganho para o Estado de aproximadamente R$ 200 mil?).
Vivemos em uma sociedade em que o homem ainda se acha o dono da mulher. Logo, se ela é sua propriedade, naturalmente ele acredita que pode fazer o que quiser com ela. Ainda ontem, em uma audiência, ouvi do réu que ele bateu na mulher porque ela não fez o jantar. Na semana passada, ouvi de outro que ele chutou a esposa pra fora da cama porque ela não queria ter relação sexual naquele dia. Ué, Mas elas não são deles? Não estão lá para servi-los na mesa e na cama? Isso é um direito do homem.
Não, isso não e um direito do homem. A experiência me mostra que o Gael da vida real existe, mas é com muito trabalho que ele deixa de ser ficção para se tornar autor da própria história. Uma vez conscientes da estrutura machista, os agressores (ou a maioria deles) passam a perceber que ninguém é dono de ninguém e que as mulheres também tem o direito de fazer suas escolhas. Informados sobre as formas de violência contra a mulher a as consequências de suas condutas, eles começam a se responsabilizar pelos seus atos e não mais a perguntar: Cade a lei Mario da Penha?
Nestes quatro anos, Tempo de Despertar tem me mostrado que o ciclo de violência é muito forte e difícil de ser rompido: 65% dos homens são reincidentes em violencia contra a mulher. Aproximadamente 67% das agressões acontecem na frente dos filhos. Assim como os meninos crescem achando que é normal bater, humilhar e menosprezar a mulher, as meninas têm como padrão relacionamentos abusivos, marcados pela violência física, moral, psicológica, sexual, patrimonial. A trama de Walcyr Carrasco não mostrou a infância de Gael, mas, sendo filho de Sophia (brilhantemente interpretada pela atriz Marieta Severo), não é difícil de imaginar que ele também teve um começo de vida marcado pela violência e, provavelmente, ela também.
Já ouvi muitas coisas destes homens. Um empresário de 31 anos lembrou de sua infância violenta e de como o programa mostrou a ele que não, não é natural. Assim como homens entenderam que podem chorar sem que isso diminua a masculinidade deles. Outro compreendeu que a ex-mulher tinha o direito de não amá-lo e seguir sua vida. José me disse ao final do projeto que chorava cada dia que tinha que ir para o programa Tempo de Despertar: “Tudo que a senhora falava era uma martelada na minha cabeça, tudo servia pra mim”.
A reincidência dos participantes do Tempo de Despertar caiu para 2%. O sucesso do projeto foi essencial para transformá-lo em lei. Em novembro de 2017, foi aprovada a Lei Municipal Tempo de Despertar na Capital; desde março deste ano, São Paulo possui uma lei que institui Tempo de Despertar em todo o estado. Em Goiás, há o Grupo Reflexivo de Autores de Violência Doméstica que atende aproximadamente 30 homens por mês. No Rio Grande do Norte, pioneiro na iniciativa, esse projeto é um sucesso, a reincidência chega a ser ZERO. Agora nossa luta é transformar esse projeto em Lei Federal.
Não existe milagre. Não sei se, de fato, dez encontros com especialistas, são suficientes para que esses homens mudem totalmente de comportamento. Mas posso afirmar que já é um começo, que conseguimos fazer com que eles parem, pensem, reflitam, sobre o contexto em que estão envolvidos e o ciclo da violência contra a mulher. O que eu ganho em ser tão machão? O que eu estou fazendo com a minha vida? Com a vida dos meus filhos? Dos meus pais? Por que estou causando tanto sofrimento nessas mulheres? Eu quero que meus filhos sejam os próximos agressores? Quero que minhas filhas sofram violência por serem mulheres? Assim como Gael eles passam a se responsabilizar, a reconhecer a violência e a mudar de comportamento.
A única certeza com meus 15 anos de experiência é que atrás de uma mulher agredida tem um homem que agride, e é com ele que eu quero falar. A punição isoladamente nos crimes de violência contra mulher é necessária, mas, isoladamente, não basta. Precisamos de três frentes de atuação: a punição, o empoderamento, o resgate da autoestima da mulher e a ressocialização do agressor. E temos perna para isso.
Já passaram por mim nesse programa mais de 300 homens, apenas seis reincidiram. Se é pouco? Pode ser, mas não para mim. Pois, isso representa, uma diminuição de 294 processos criminais e mulheres agredidas. Muito menos sangue, suor e lágrimas. Garanto que hoje é o que temos de mais eficaz para sairmos da posição de 5º país do mundo com o maior índice de violência contra a mulher. E não vou desistir. Já vi, já ouvi, vivi e já validei! Conheço muito Gael que ainda está do outro lado do Paraíso, mas conheço vários que com a desconstrução do machismo e de uma nova definição de masculinidade, quebraram esse muro. Sempre é tempo de despertar.
Maria Gabriela Prado Manssur é Promotora de Justiça, participa do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e da Diretoria da Mulher da Associação Paulista do Ministério Público (Ministério Público do Estado de São Paulo)