Chegar a um entendimento pacífico sobre o que se pode e o que não se pode fazer no Carnaval é impossível. Mas, na medida em que se buscam níveis avançados de civilização e cidadania, a sociedade brasileira tende a estabelecer limites cada vez mais claros sobre comportamento durante uma festa que é, por índole, libertária, mas pode ser usada para o exercício de poder autoritário e abusivo.
Se no passado versos como o célebre “vou beijar-te agora/ não me leve a mal/hoje é Carnaval” justificavam culturalmente um carinho não consentido, hoje o quadro mudou. Passados 51 anos do lançamento da marcha-rancho Máscara Negra, composta por Zé Kéti e Pereira Matos, o beijo roubado passou de ideia romântica a subtração do direito individual, mostrando o que meio século pode fazer com valores, códigos e normas.
Evidentemente as circunstâncias e o contexto vão determinar o grau de ofensividade de um ato, já que as leis nem sempre são claras ou detalhadas sobre temas dessa natureza, obrigando os juízes a quebrarem cabeça para pronunciarem suas sentenças. É o que observa a consultora do Senado Juliana Oliveira. Um beijo roubado na base da surpresa, embora indesejável e ilegal, poderá ser considerado pela Justiça menos grave do que o obtido literalmente à força. Este, a seguir estritamente o que diz o Código Penal, é considerado estupro, observa a consultora.
Já em 1967, quando Zé Kéti fez sucesso com sua marcha, estava em vigor a Lei das Contravenções Penais, nascida do Decreto-lei 3.588/1941, baixado pela ditadura Vargas. O texto prevê multa de “200 mil réis a 2 contos de réis” a quem “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”. O decreto continua em vigor.
A legislação é clara ao definir estupro ou atos atentatórios ao pudor?
Assédio
Em vídeo publicado no dia 17 de janeiro, no canal JoutJout Prazer, a jornalista e youtuber Julia Tolezano forneceu um balizamento para o que considera não apropriado a um homem fazer no Carnaval. Ela faz questão de explicar que está repisando o óbvio porque, segundo a jornalista, os homens insistem em repetir atitudes condenadas. Julia arremata o vídeo Seis toques para um Carnaval agradável com frase de outra internauta: “depois do não, tudo é assédio”.
Apesar das boas intenções da ativista, o termo assédio pode embaçar um pouco o entendimento do problema e o debate em torno de soluções. A expressão assédio, seja sexual ou moral, está restrita na legislação ao campo das relações de trabalho.
Para a consultora, as mudanças na tipificação do crime de estupro — que passou a ser mais abrangente em 2009, incluindo a “conjunção carnal e outros atos libidinosos, mediante violência ou grave ameaça” — criaram uma dificuldade, pois o conceito de “atos libidinosos” é impreciso.
Essa dificuldade surgiu de maneira dramática em agosto do ano passado quando o juiz José Eugenio Souza Neto libertou Diego de Novais, preso depois de se masturbar num ônibus e ejacular no pescoço de uma passageira. Souza Neto entendeu que não houve violência ou coação física e o enquadrou na Lei de Contravenções Penais. Ainda que muitos juristas tenham pedido a ampliação do conceito de violência para estendê-lo à esfera psicológica e moral, casos como esse continuam gerando interpretações contraditórias.
Propostas
No Senado, alguns projetos em tramitação pretendem preencher essa lacuna. O PLS 12/2017, de Marta Suplicy (PMDB-SP), prevê o crime de molestamento sexual. Aprovado em setembro pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e enviado à Câmara dos Deputados, o projeto estabelece pena de dois a quatro anos de reclusão para quem constranger, molestar ou importunar alguém mediante prática de ato libidinoso realizado sem violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico.
“É inadmissível que atos violentamente ofensivos e com possíveis graves repercussões para a saúde mental e a autoestima da vítima sejam enquadrados como mera contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, cuja pena prevista é de multa. É imperioso reconhecer que a ausência de proteção específica adequada fere o princípio da proporcionalidade inserto na Constituição federal”, argumenta Marta na justificação.
Também aprovado pela CCJ e enviado à Câmara, o PLS 740/2015, de Humberto Costa (PT-PE), inclui no Código Penal o crime de constrangimento ofensivo ao pudor. A pena é de reclusão de dois a quatro anos para quem constranger, molestar ou importunar alguém de modo ofensivo ao pudor, ainda que sem contato físico, atentando-lhe contra a dignidade sexual. Se a conduta ocorrer em transporte coletivo ou em local aberto ao público, está previsto o aumento da pena em até um terço.
— A conduta de frotteurismo [ato de se esfregar em outra pessoa] pode ser hoje enquadrada como importunação ofensiva ao pudor, que é uma contravenção penal com previsão apenas de multa, ou violação sexual mediante fraude, crime com pena de reclusão de dois a seis anos. São dois extremos e nenhum oferece uma descrição adequada da conduta. O projeto cria uma solução intermediária, que nos parece acertada — explicou o senador.
Enquanto a definição legal não chega, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos do Rio de Janeiro lançou a campanha “Carnaval é curtição, respeita o meu não”, contra o assédio sexual durante os festejos.
— No Carnaval, alguns acham que tudo é permitido. É quando comportamentos inconvenientes são adotados por causa do contexto descontraído da festa. Algumas dessas condutas são criminosas e acarretam sanções legais — advertiu o major Michelli, da Polícia Militar do Distrito Federal.
Barulho, sujeira e preconceito podem ofuscar brilho da festa
Nem tudo é alegria no Carnaval. Há os que são afetados negativamente por causa do barulho e de comportamentos incivilizados, como o de urinar ao ar livre, jogar lixo nas ruas e praticar atos sexuais em público.
Os problemas decorrentes dos festejos aumentaram nos últimos anos devido à retomada vigorosa do Carnaval de rua em todo o país, seguindo a explosão dos grandes blocos do Rio de Janeiro, que batem recordes de comparecimento a cada ano. Outras cidades repetem o movimento do Rio, como São Paulo e Belo Horizonte. Em Brasília, que não tem muita tradição carnavalesca, a festa nas ruas também tem aumentado muito. Foi de 370 mil foliões em 2015 para 1 milhão em 2016. A estimativa para este ano é de 2 milhões de pessoas.
O historiador Tales Pinto ressalta que o Carnaval vive da “subversão de papéis”, mas essa subversão ocorre usualmente dentro de um intervalo delimitado de tempo. Mas, para garantir o bem-estar coletivo, é preciso ponderar até onde a festa pode ir. O som alto do trio elétrico pode entrar madrugada adentro? Qual a punição para depredação do patrimônio público e do meio ambiente?
A procuradora dos Direitos do Cidadão do Distrito Federal Maria Rosynete Lima explica que a preparação para o Carnaval deve começar muito antes das festas:
— Não escutamos apenas as comunidades que vivem no entorno das manifestações culturais, mas também o interesse de todos foliões que participam das festividades. Ao governo cabe oferecer condições para que a festa aconteça da melhor maneira possível, como banheiros químicos — explicou.
A música é um dos principais ingredientes do Carnaval e também um dos seus aspectos mais delicados. A Lei do Silêncio não é revogada nesse período, mas nem toda cidade tem a sua. Legislações prevendo volume máximo são adotadas no Rio de Janeiro, Teresina, Belo Horizonte, Brasília e Salvador.
A capital federal tem a legislação mais rígida do país, que fixa a emissão sonora máxima permitida em 50 decibéis após às 22h, nas áreas residenciais. Por causa desse patamar rigoroso, em 2017, o bloco Suvaco de Asa, que fazia seu trajeto em bairros residenciais, teve que mudar o percurso.
Segundo informou a Secretaria da Ordem Pública de Salvador, o volume máximo de emissão sonora permitida aos trios elétricos é de 110 decibéis. Nos palcos e camarotes, esse limite cai para 100 decibéis. Os organizadores podem ser autuados ou ter os eventos interditados caso ultrapassem os tetos para emissão sonora.
Ao lado do barulho excessivo, a micção em áreas públicas tem acompanhado o avanço das multidões. Algumas cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, preveem multa para quem fizer xixi na rua. O Rio de Janeiro tem se notabilizado pela efetiva cobrança, inclusive com o uso de máquinas portáteis pelos fiscais. Para estimular o uso, os banheiros químicos receberam a bem-humorada sigla UFA, Unidade de Fornecimento de Alívio.
Antes do estabelecimento da multa, a controvérsia havia girado em torno do tratamento jurídico dispensado aos que eram flagrados urinando a céu aberto. Prisões com base no Código Penal, por ato obsceno, e na Lei de Contravenções Penais, por importunação ofensiva ao pudor, foram duramente rejeitadas por juristas, juízes e até delegados de polícia, apesar de muita gente ter sido presa e processada.
Incorreto
Em anos recentes, movimentos organizados aumentaram a vigilância em torno de preconceitos no campo étnico e sexual. Em 2017, a Rede Globo, por exemplo, vestiu a modelo Globeleza em sua tradicional chamada de Carnaval, acompanhando as pressões de grupos que denunciam a conexão entre sexualização do corpo da mulher negra e a violência de gênero de que são vítimas.
No mesmo ano em que a Globo vestiu sua modelo, praticamente nua desde 1992, alguns blocos passaram a fazer restrições a marchinhas como O teu cabelo não nega, de 1929, uma parceria dos irmãos João e Raul Valença com Lamartine Babo. Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly Roberto Faissal, de 1963, também já não agrada muito. Segundo Renata Rodrigues, jornalista e uma das organizadoras do bloco Mulheres Rodadas, do Rio de Janeiro, criado como uma reação à expressão machista, defende a exclusão de músicas que contenham referências à mulata, embora rejeite posturas autoritárias:
— Nosso bloco levanta a bandeira feminista, então não faz sentido tocarmos músicas com esse tipo de conotação, mas a ideia não é banir as músicas do Carnaval ou criar uma cartilha e, sim, levar a discussão para a sociedade — argumenta.
Já Marcelo Vital, do bloco carioca Chora Me Liga, diz que é contra qualquer censura:
— O Carnaval é a maior manifestação popular e cultural do Brasil. Essa liberdade cultural é a essência do Carnaval, censurar as músicas carnavalescas dos anos 60 é um retrocesso.
Consultora diz que lei ignora crimes não tão graves como estupro
Entenda os limites da legislação sobre o comportamento sexual, em entrevista com a consultora do Senado Juliana Oliveira, especialista em direito penal.
A legislação é clara ao definir estupro ou atos atentatórios ao pudor?
A legislação poderia ser mais precisa sobre o tema, evitando problemas de tipicidade. Algumas condutas não são graves o suficiente para serem consideradas estupro, tipo previsto no Código Penal. Desde 2009, temos a reunião em um mesmo tipo penal dos crimes relacionados à prática de conjunção carnal e outros atos libidinosos, mediante violência ou grave ameaça. O conceito de “atos libidinosos”, todavia, é impreciso. Então, em tese, o juiz poderia aplicá-lo em situações muito claras de estupro e em outras não tão claras. Alguns juízes não consideram práticas menos graves como estupro, dados os princípios da reserva legal ou da razoabilidade e proporcionalidade, e nisso surge um problema de tipicidade: como classificar esses crimes? Uma solução está presente na Lei de Contravenções Penais, como importunação ofensiva ao pudor, mas se trata de um crime extremamente leve, de menor potencial ofensivo, sem previsão de pena de prisão. Em verdade, temos na legislação a ausência de um tipo de gravidade média, que compreenda atos não tão graves como o estupro, porém mais sérios do que a importunação ao pudor.
Há jurisprudência formada a respeito dos atos obscenos?
Não é possível dizer que há jurisprudência. Na prática, os juízes analisam o caso concreto e buscam examinar se estão presentes os elementos do tipo penal de estupro. Se houver real uso de violência ou grave ameaça, existe uma razoável probabilidade da condenação pelo estupro.
Quais são os limites à nudez previstos na legislação ou em jurisprudência?
Trata-se de um tema que envolve muitas zonas cinzentas do que é tolerado ou não pelo meio social. Em tese, uma mulher nua em um ambiente público ou um casal se beijando muito ostensivamente poderiam ser considerados ofensivos ao pudor. Mas, para a caracterização de crime, é necessário mais do que isso. É necessário que haja ofensa às outras pessoas, desrespeito a um sentimento de recato e decoro. Então, são diferentes as situações de uma mulher nua na Sapucaí ou numa igreja.
A caracterização de ato obsceno pode depender da comunidade na qual o ato é praticado, supondo que há algumas mais tolerantes do que outras?
Diria que sim. Há ambientes sociais mais livres em que o sentimento de pudor, recato, não é agredido pela nudez. Como exemplo, uma sociedade em que se pratica o nudismo.
Do ponto de vista jurídico, o assédio sexual ou moral está restrito ao âmbito das relações de trabalho?
Exato. Assédio sexual no Código Penal exige uma posição hierárquica superior por parte do ofensor, no ambiente de trabalho. Assédio sem essa qualidade estaria tipificado na Lei de Contravenções Penais, se for ofensivo ao pudor.
Nelson Oliveira e Débora Brito