(Revista Fórum, 21/08/2016) Um relato impressionante sobre a violência naturalizada contra a mulher na sociedade brasileira e sobre a completa contaminação das instituições pelo machismo que torna esta violência um círculo vicioso.
Por Marina Ganzarolli em seu Facebook
Hoje eu virei estatística. Mais uma vítima do machismo. Mais uma vítima da violência contra a mulher. Mais uma vítima da lesbofobia. Mais uma vítima do despreparo das polícias para lidar com a misoginia e a LGBTfobia. E tapa dado ninguém tira. Fui agredida e fui ameaçada de morte em Guarariba, no interior da Paraíba. Talvez, se ele estivesse armado, eu não estaria aqui agora escrevendo este relato.
Pra quem não me conhece, sou advogada, Mestra em Direito pela USP – Universidade de São Paulo, co-fundadora da Rede Feminista de Juristas e oriento vítimas de violência há 10 anos, desde que fundamos o Coletivo Feminista Dandara. Já fui conselheira da Criança e do Adolescente, da Assistência Social e do Conselho de Drogas e Álcool, todos do Município de São Paulo. Sou pesquisadora do Cebrap e no ano que vem inicio meu doutorado também pela USP. Gozo de muitos privilégios. Sou branca e faço parte de uma pequena porcentagem da população brasileira que tem formação superior e ganha muito bem. Nada disso impediu que eu sofresse uma agressão lesbofóbica, para que eu fosse – mesmo sendo advogada – confrontada com a falta de sensibilização do escrevente que por duas vezes propôs que eu resolvesse a questão na base da conversa, que por duas vezes afirmou que eu deveria me conciliar com o homem de 43 anos que eu nunca tinha visto na vida e que me agrediu, simplesmente porque eu sou mulher, jovem e lésbica.
Na noite desta última sexta-feira, no dia 19 de agosto, em Guarariba, na Paraíba, depois de participar de um Simpósio de Gênero e Diversidade como palestrante convidada na UEPB, fomos comemorar o encerramento do evento no bar Sampa com as organizadoras do evento – a maioria negra e lésbica, estudantes da UEPB e integrantes do Coletivo Formiga, responsável pela realização deste primeiro simpósio sobre gênero e sexualidade da estadual. Fui convidada exatamente pra falar sobre machismo, cultura do estupro, violência contra a mulher e heteronormatividade na universidade.
Conversando sobre lesbianismo e sexualidade lésbica no bar com uma das estudantes – que estava tirando dúvidas de foro íntimo e pedindo aconselhamento pessoal – dois homens sentados na mesa ao lado passaram a nos constranger, aproximando-se para escutar a conversa e nos encarando fixamente. A estudante, de tão constrangida com a situação, não conseguiu nem olhar para os assediadores. Eu, com toda a tranquilidade do mundo, perguntei se tinham perdido alguma coisa e por que estavam nos encarando. Um homem jovem, de cerca de 1,80m, todo musculoso – imagino eu muito forte – riu e continuou nos encarando, como quem pensa que pode fazer o que quiser porque é homem, porque foi educado para que as mulheres o obedecessem e jamais o dissessem não. Eu encarei de volta, da mesma forma que ele o fazia, olhando-o fixamente. Ele continuou rindo, eu continuei olhando, ele parou e nós continuamos a conversa. Horas depois, quando estávamos indo embora passamos pela mesa deles – que era do lado da nossa – e eu, muito calmamente dirigi a palavra ao homem que nos encarou e disse: “olha, desculpem por qualquer incômodo viu, mas a democracia é assim, temos que respeitar a diversidade e a diferença”. Imediatamente, o homem sentado com ele, mais velho, forte e baixinho, se levantou gritando e, partindo pra cima de mim, disse: “quem você pensa que é pra vir até a nossa mesa? quem você pensa que é?”. O garçom imediatamente o conteve e ele, por cima do braço do garçom que o segurava me deu uma tapão de mão aberta na face esquerda do rosto e disse “eu vou te matar, eu vou te matar!”. O bar inteiro, que viu tudo o que aconteceu, se levantou para me defender e a polícia, que rondava a praça que em que estávamos, parou. O homem saiu correndo, bateu e fugiu, como um menino, que apronta e se esconde da mãe. A polícia o perseguiu e o abordou. Quando ligamos para o 190, duas pessoas já haviam ligado, reportando que uma mulher tinha sido agredida no referido estabelecimento. A polícia o perseguiu e o abordou. Fomos todos pra delegacia comum, a única na região.
Nunca tinha levado um tapa na cara. Meus pais nunca me bateram, ninguém nunca encostou um dedo em mim. Essa foi a primeira vez. Espero que seja a última.
Na delegacia, as estudantes, que estavam muito nervosas foram repreendidas pelos policiais e os dois homens, que também estavam visivelmente exaltados foram o tempo todo tranquilizados pelos policiais. Eu, que apesar de ser a vítima, ainda sentindo o forte ardor no rosto deixado pela violência que tinha acabado de sofrer, mantive a calma como quem trabalha com isso, e falei o tempo todo de forma extremamente técnica, calma e pausada. Afirmei que queria lavrar o BO por ameaça e vias de fato. Não tinha delegado de plantão e fomos atendidas pelo escrevente. Ele insistiu para que nós resolvêssemos a questão na conversa. Eu voltei a firmar que queria lavrar o BO de ameaça e vias de fato. Dez minutos depois ele voltou a insistir, eu respondi da mesma forma. O policial que redigia à mão o Boletim de Ocorrência me perguntou em dado momento se o agressor estava “indignado”. Eu respondi que não saberia dizer como ele se sentiu, porque essa é uma questão subjetiva, mas poderia dizer como eu, enquanto a vítima do crime reportado, me senti: humilhada, constrangida, violentada. Mas que isso também era subjetivo, que nem o meu sentimento e nem o sentimento dele importavam para a apuração dos fatos relatados. Que o julgamento de mérito sobre o que aconteceu cabia ao juiz ou juíza, que é aquele(a) que tem competência jurisdicional para julgar a questão. Ele entendeu o recado e não escreveu nada sobre o sentimento do agressor, que claramente era, para aquele policial, a motivação da violência. Ele também não escreveu que o acusado fugiu da polícia e que teve que ser abordado de forma violenta.
Uma das estudantes, que chorava copiosamente na delegacia, repetindo que não conseguia acreditar que a principal convidada do evento, que veio de São Paulo pra falar de violência contra a mulher, tenha sofrido violência lesbofóbica no final de um seminário sobre machismo e LGBTfobia. Um dos policiais, o único que tentou acalmá-la ao invés de repreendê-la, disse: “da próxima vez que vocês fizerem esse evento, ele tem que assistir a palestra“. Esse policial, o mais sensível à situação toda, era também o único policial negro que nos atendeu. Pode ser coincidência, claro. Mas pode também ser pelo fato de que um homem negro também sabe o que é sofrer discriminação no Brasil. Por outros motivos, claro, mas pode ser.
Procedimento encerrado, fomos todas embora de táxi. Os dois homens estavam lá fora e, de dentro do táxi, pudemos ver os policiais se aproximando deles quando partimos para conversar. As pessoas do bar em que estávamos, o Sampa, e também as outras presentes no bar um pouco mais acima, o Terapia – que viram ele fugindo – nos apoiaram, e várias delas vieram falar com a gente, se oferecendo para serem testemunhas antes de entramos na viatura. Mas uma da estudantes, durante a confusão da abordagem, pôde ouvir dois homem conversando e um disse ao outro: “tá certo, sapatão tem mesmo que apanhar“. Deixando claro que todos ali presentes, que viram os fatos, sabiam exatamente do que se tratava. Se tratava de lesbofobia. De ódio e aversão a uma orientação sexual distinta daquela considera padrão numa sociedade que é heretonormativa, machista e cristã.
Descobri que na semana passada uma jovem lésbica foi assassinada em João Pessoa. Ela havia ajudado uma amiga a sair de um relacionamento heterossexual abusivo e violento. Ele entrou armado em uma festa na casa da vítima, mandou todo mundo ficar deitado e a matou com tiros à queima roupa. Esta vítima de feminicídio lesbofóbico foi homenageada no Simpósio. Ela era conhecida e amiga de várias estudantes da UEPB.
Ontem, antes de partir da Paraíba, graças à intervenção da querida advogada Andrea do Mais Mulheres no Direito, me reuni com a advogada Thiciane Carneiro e seu colega especialista em Penal, o advogado Luiz Guedes, ambos de João Pessoa, e com a advogada Ana Flavia Nobrega Torres, das Prerrogativas da OAB em Guarabira. Conversei ao telefone com o presidente da Comissão das Prerrogativas da OAB Paraíba, Alisson Fortuna, e vamos encaminhar a denúncia para a Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da OAB. Somos muitas e estamos mobilizadas contra a violência contra a mulher e a homofobia.
Descobri que na semana passada, uma mulher vítima de violência doméstica em Guarabira foi à delegacia denunciar o marido que a espancou e foi orientada a voltar no dia seguinte. Ela voltou pra casa e disse ao marido que iria recolher todas as suas coisas e partir. Ele a ameaçou de morte. Ela voltou na delegacia toda roxa e novamente foi orientada e voltar no dia seguinte. Pegou suas coisas e saiu de casa. Ele a perseguiu de moto e deu três tiros no carro dela. Ela sobreviveu.
Descobri também que a ex-mulher do governador Ricardo Coutinho do PSB, a Pâmela Bório, uma jornalista plenamente capaz e com condições de criar seu filho, não pode vê-lo e quando o vê, o faz sob escolta da Polícia Militar do Estado da Paraíba. No Brasil, a não ser que a mãe esteja em grave situação de drogadição é muito raro a mulher não ter a guarda o filho. A situação faz jus ao que a Sociologia chama de herança coronelista do Brasil.
Assim como em qualquer lugar do nosso país a Paraíba também tem violência contra a mulher, machismo e LGBTfobia. E ela precisa ser enfrentada. Precisamos falar de papéis de gênero e sexualidade nas escolas. Que masculinidade é essa que quando questionada reage com violência? O homem não é violento por natureza, ele não é um animal. É um ser humano racional, um ser pensante. Não tem nada de biológico na violência. A masculinidade é construída socialmente. Precisamos falar sobre construção de masculidades. Muito. Urgente.
Precisamos também qualificar a profissão e os profissionais das polícias militar e civil para o acolhimento e encaminhamento adequado das situações de violência contra a mulher e contra a população LGBT.
Que muitos eventos maravilhosos como este 1º Simpósio de gênero, sexualidade e educação: resistir, reexistir, existir da UEPB aconteçam por todo o país. Que muitos coletivos como o Coletivo Formiga da UEPB surjam nas universidades brasileiras de norte a sul. Apesar do desfecho triste e revoltante, o evento foi incrível, super bem organizado, com debates qualificados e o auditório – que tinha capacidade pra 200 pessoas – esteve lotado em ambos os dias de realização. Foram mais de 500 inscrições em Guarabira, uma cidade de cerca de 50 mil habitantes.
Nós, mulheres, quando juntas, somos muito mais fortes. Não vamos nos calar, não vamos deixar de ir e vir pra onde bem entendermos, de nos relacionar com quem bem entendermos, de ocupar os espaços públicos e de poder que quisermos. MACHISTAS, NÃO PASSARÃO.
*Marina Ganzarolli é advogada, Mestra em Direito pela USP – Universidade de São Paulo, co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, orienta vítimas de violência há 10 anos, desde que fundou o Coletivo Feminista Dandara. Foi conselheira da Criança e do Adolescente, da Assistência Social e do Conselho de Drogas e Álcool, todos no Município de São Paulo. É pesquisadora do Cebrap.
Maria Frô
Acesse no site de origem: Marina Ganzarolli “Hoje eu virei estatística” (Revista Fórum, 21/08/2016)