Por que alterações na Lei Maria da Penha não protegem as mulheres, segundo especialistas

18 de outubro, 2017

Três artigos aguardam sanção presidencial. Um deles é considerado inconstitucional por juristas.

Está nas mãos do presidente Michel Temer a decisão final sobre um projeto que pode enfraquecer a Lei Maria da Penha, segundo juristas. O texto aprovado pelo Senado, em 10 de outubro, permite que medidas protetivas às vítimas da violência doméstica sejam concedidas por delegados. Atualmente, apenas os juízes podem definir as medidas.

Com autoria do deputado Sergio Vidigal (PDT-ES), o projeto — que inclui outros dois artigos na Lei — , foi aceito em uma votação simbólica e apresentado como positivo. Porém, foi considerado inconstitucional por organizações vinculadas aos direitos humanos e ao Judiciário.

Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Defensoria Pública e o Ministério Público, o texto fere a Constituição porque “transfere prerrogativas judiciais a agentes policiais, além da falta de estrutura das delegacias e de capacitação dos agentes de polícia no País para atenderem às demandas das mulheres em situação de violência”.

De acordo com texto do projeto, a concessão de medidas protetivas pelo delegado só será admitida em caso de risco real ou iminente à vida ou à integridade física e psicológica da mulher e de seus dependentes. Sendo assim, a autoridade policial deverá comunicar a decisão ao juiz e também consultar o Ministério Público em até 24 horas para definir pela manutenção da decisão.

Mas, então, como o projeto que promete agilidade pode prejudicar as mulheres e por quê está sendo considerado inconstitucional? Em entrevista ao HuffPost Brasil, a defensora pública Ana Rita Souza Prata, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, defende que, por mais que à primeira vista aparente ser positiva, a modificação pode trazer danos à aplicação e efetividade da lei.

“A Lei Maria da Penha prevê obrigações hoje para a polícia que não são cumpridas pela alegação de falta de profissionais. Eu fico refletindo que profissional vai surgir para intimar esses agressores. É uma medida que não vai ter efetividade na realidade. E a gente questiona qual o objetivo real dessa proposta. Porque as mulheres não terão mais proteção com ela”, argumenta.

De início eu entendi que seria uma coisa positiva. Mas é inconstitucional. O policial não pode fazer as vezes do poder Judiciário. Cada qual com seu cada qual. A lei não pode perder a sua força, e para qualquer alteração é preciso que as ONGs e entidades que criaram a lei estejam envolvidas no debate. Isso não aconteceu.Maria da Penha, em entrevista ao HuffPost Brasil em 2015.

Na justificativa da proposta consta que, se sancionada, ela irá acelerar a apreciação dos pedidos de proteção, a fim de garantir segurança; e que tem como objetivo promover melhorias no sistema de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.

“Ela dá uma autorização ao delegado, um poder de praticar um ato de jurisdição, que é privativo de um juiz. Mas e a prisão em flagrante? Eles podem questionar. Ela está prevista em nossa Constituição. Esse argumento de que a alteração vai beneficiar as mulheres é raso. A gente tem que pensar na simbologia desse ato, de dar o poder aos delegados. Porque hoje o que se discute é isso, mas amanhã pode ser outra coisa. E aí? A gente não vai mais precisar de um juiz?”, questiona a defensora.

Outra preocupação, de acordo com Ana Rita Prata, é a de que as mulheres busquem a delegacia e tenham uma compreensão equivocada de que elas estão protegidas. “Sem a intimação do agressor, que seria a responsabilidade do delegado, a medida protetiva nada mais é do que um papel. Essa falsa compreensão da vítima leva à sensação de que elas são obrigadas a relatarem as violências unicamente na esfera criminal. E elas não são obrigadas”, argumenta.

A inconstitucionalidade e outros pontos

Stela Valim, advogada e membro da Rede Feminista de Juristas, reforça que o projeto é inconstitucional e explica: “A autoridade policial não tem função jurisdicional, então, ao conceder essa medida, ela ‘atravessa’ a atividade do Poder Judiciário”.

Para Valim, o projeto não vai acelerar a proteção das mulheres, mas produzir um efeito contrário. “A mulher em situação de violência vai ficar muito mais dependente da autoridade policial, e isso pode trazê-la de volta à revitimização, até porque nós sabemos que, infelizmente, nossa polícia ainda é muito despreparada para lidar com esse tipo de violência e acaba adotando práticas machistas e desestimulando a mulher que procura ajuda”, reflete a advogada.

REPRODUÇÃO

O projeto de lei prevê, ao menos, a inclusão outros dois novos artigos na Lei Maria da Penha que dizem respeito à atuação da autoridade policial. Estes, segundo a advogada, são interessantes e podem “resguardar sua integridade” e “priorizar o atendimento por profissionais do sexo feminino”.

O artigo 10-A e 12A do projeto, respectivamente, dizem respeito ao “atendimento policial e pericial especializado e ininterrupto” como direito da vítima; e em pressionar os estados para criar, com prioridade, equipes especializadas para o atendimento e investigação das violências graves contra a mulher, além do atendimento específico por servidoras do sexo feminino.

“A intenção é fazer com que as delegacias sigam certas condutas no atendimento à mulher em situação de violência que sejam mais condizentes com as suas necessidades. Ou seja, deve-se ter um cuidado para evitar a revitimização, resguardar sua integridade, priorizar o atendimento por profissionais do sexo feminino, além de preparar a própria delegacia para atendê-la melhor, com um recinto específico e o acompanhamento de profissionais especializados”, explica.

Para Valim, a implementação dessas medidas pode enfrentar obstáculos de natureza burocrática e política e devem ser acompanhados de perto para se ter noção de sua efetividade a longo prazo. Sobre a questão referente às medidas protetivas, a advogada afirma que o artigo abre uma brecha complexa na lei:

“A longo prazo, [estas medidas] não trariam uma real proteção à mulher em situação de violência: a polícia, por ter outras atribuições e não ter o preparo necessário, acabaria não dando conta dessa nova tarefa, o que levaria a uma mera impunidade dos agressores. Além disso, há o risco de que o Judiciário passe a simplesmente validar a decisão policial, sem analisar os pormenores do caso concreto”, explica.

REPRODUÇÃO

Ana Rita Prata, no entanto, vê redundância em outros dois pontos do projeto. Segundo a defensora, a redação da Lei Maria da Penha já prevê o atendimento humanizado e especializado às vítimas, bem como o funcionamento de delegacias das mulheres sem interrupção. Ela chama atenção para a estrutura precária da organização policial do Brasil que, na realidade, não tem condições de absorver estas demandas.

“É difícil acreditar que isso seja praticado de verdade, porque não tem pessoal. Eles podem tomar medidas alternativas, como funciona aqui em São Paulo: das nove delegacias da mulher, apenas uma fica aberta 24 horas. Essa é uma medida recente. É preciso ter em mente essa falta de estrutura da polícia“, aponta.

A defensora pública chama atenção de que as mulheres possuem o direito inviolável de viverem sem violência. E que é papel do Estado garantir a segurança não só pela via criminal.

“As políticas públicas, incluindo o judiciário, devem garantir proteção à mulher independente da esfera criminal. Não necessariamente é preciso ter uma notícia de crime, um boletim de ocorrência, para conceder uma medida protetiva. Com essa alteração, pode causar ruído e as mulheres acreditarem que precisam ir à delegacia, mas elas têm outras vias, como buscar o Ministério Público e as Defensorias Públicas”, conclui Prata.

Não silencie!

“Foi só um empurrãozinho”, “Ele só estava irritado com alguma coisa do trabalho e descontou em mim”, “Já levei um tapa, mas faz parte do relacionamento”. Você já disse alguma dessas frases ou já ouviu alguma mulher dizer? Por medo ou vergonha, muitas mulheres que sofrem algum tipo de violência, seja física, sexual ou psicológica, continuam caladas.

Desde 2005, a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, funciona em todo o Brasil e auxilia mulheres em situação de violência 24 horas por dia, sete dias por semana. O próximo passo é procurar uma Delegacia da Mulher ou Delegacia de Defesa da Mulher. O Instituto Patrícia Galvão, referência na defesa da mulher, tem uma página completa com endereços no Brasil. Clique aqui.

Por Ana Beatriz Rosa Repórter de Vozes, Mulheres e Notícias, HuffPost Brasil

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