Somos todas Marielle Franco!, Por Cidinha Silva

16 de março, 2018

O gosto na boca é de sangue, horror e medo. E quem não sente medo nesse momento é porque está do lado dos que nos amedrontam ou porque não dimensionou a gravidade desses dias. Desculpem-me os amigos e familiares de Marielle, mas não consigo escrever sobre outros afetos envolvidos nessa perda devastadora. Só penso nessa situação-limite, no que virá ainda sobre nós.

(Diário do Centro do Mundo, 16/03/2018 – acesse no site de origem)

Fomos todas Cláudias, Cláudia da Silva Ferreira. Fomos baleadas junto com ela, tivemos nosso corpo pendido do porta-malas de um carro de polícia e arrastado pelas ruas de Madureira. Somos Marielle porque fomos, somos Cláudias.

Enquanto Cláudia da Silva Ferreira, trabalhadora e mãe, era conhecida apenas pelos seus, negros como ela, Marielle Franco era vereadora vitoriosa, depositária de quase 47.000 votos confiados pelos seus, os da Maré, os de outras favelas e de outros quilombos da cidade do Rio de Janeiro; conhecida e reconhecida no Brasil e no exterior.

Sermos todas Cláudias significa que para os que têm como projeto nosso extermínio, não importa que sejamos Marielle, eles podem nos abater a qualquer momento. Por isso, senhoras e senhores, vozes que defendem a exclusividade dos ataques às mulheres e homens de favelas e periferias, àquelas pessoas sitiadas entre a violência do braço armado do estado e os valões, percebam que decodificar a execução de Marielle (obrigada a se mudar da Maré para sobreviver), é pensar em estratégias de sobrevivência para todos nós.

A manutenção do racismo, seus efeitos e privilégios é o projeto maior da branquitude brasileira e o golpe de 2016 está a serviço desse projeto, basta ver as comemorações pela execução de Marielle, uma negra de voz ativa e dona de poder institucional que poderia incomodar, embora talvez não chegasse a desestabilizar o projeto de extermínio de negros em curso nas favelas cariocas e no Brasil. Projeto executado pela eliminação simples dos corpos negros, como também pela humilhação e subordinação desses corpos às leis do exército interventor que legitima e aprofunda mecanismos racistas vigentes há décadas naqueles espaços.

A cena cada dia mais comum, em que os racistas saem completamente do armário, é possibilitada, seria mais preciso dizer, é impulsionada, catapultada pelo contexto do golpe que, como alguém já disse, pode chegar à revogação da Lei Áurea. Enquanto não se alcança esse extremo, toca suprimir pequenas conquistas políticas após décadas de luta, aprovar a reforma trabalhista no nível federal e pautas legislativas de supressão de direitos e garantias das comunidades (mandado de busca coletiva, lei do abate, que permite que uma pessoa portadora de arma seja alvejada de forma letal numa operação policial). Sim, é a legitimação do que acontece há pelo menos um século nas comunidades negras e periféricas, mas não resolve nada refugiar-se nessa constatação.

O recado dado pelos assassinos de Marielle Franco é nítido: “se vocês dormirem pensando que são Marielle, acordarão como Cláudias, ou seja, às mulheres pretas nem nos damos o trabalho de ameaçar, nós matamos, principalmente aquelas que conheçam por dentro, como operamos”.

Assim, a esquerda que, supostamente quer situar esse assassinato “apenas” no contexto do golpe, é o menor dos nossos problemas. Compreender como o racismo opera e nos aniquila exige um pouco mais de sofisticação, de articulação de idéias e contextos, no mínimo para parar de achar que “o golpe não nos diz respeito porque nós, negros, sempre vivemos em regime de exceção”. À medida que o golpe se alarga as condições de vida pioram para aqueles que vivem espremidos entre a falácia da garantia da segurança pública que os dizima e o valão. Exige atenção ao poder das instituições. Marielle Franco não era apenas uma voz que denunciava arbitrariedades e crimes de um batalhão de polícia responsável por uma área do Rio de Janeiro. Ela era a relatora da Comissão que acompanharia a intervenção militar na cidade e conhecia por dentro, repito, os meandros da arbitrariedade racista.

Audré Lord já nos ensinou que o silêncio (não falar sobre o que nos oprime), não nos salvará, contudo, se não organizarmos nossa voz e nossa fúria, poucos resultados obteremos. Em Recife, por exemplo, como resposta à vereadora mais votada da história da cidade que propôs um culto na praia para afastar de lá e do Brasil uma inventada “maldição de Iemanjá”, comunidades religiosas de matriz africana lograram reunir cerca de 50 pessoas numa manifestação de repúdio e cobrança de providências na porta do Ministério Público local.

A vereadora que praticou o crime de racismo religioso, por sua vez, contra-atacou apresentando ao mesmo MP, uma lista com 300 assinaturas de instituições que a apóiam e referendam seu trabalho como “missionária” e vereadora. 300 instituições.

As instituições precisam se posicionar em nosso favor a partir da execução de Marielle Franco, algumas já o fizeram: Geledés- instituto da Mulher negra, o Instituto Patrícia Galvão, A Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou será morta, o Parlamento Europeu, o partido político espanhol Podemos, a Anistia Internacional, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, entre outros.

O racismo é sistêmico e tem altíssima capacidade de mutação, se não estivermos atentos a isso, ele nos vence pelo cansaço, pela eliminação física ou simbólica, e/ou nos circunscreve à aparente vitória de “discutir o racismo pelo racismo”, desarticulando-o de todos os sistemas que nos envolvem.

O racismo é estrutural, mas não é estático, ao contrário, é dinâmico, ele se renova, se repagina, se reorganiza e o faz ao longo de anos, pacientemente, enquanto mata e humilha negros, indígenas e outros alvos para mostrar quem é que manda. Enquanto isso, parcela dos nossos se isola no mundo de Bob preto e não discute o golpe “porque negro já é golpeado na favela há 500 anos”.

E, se a fúria for a solução, que seja organizada, conduzida pelo cérebro e que se materialize nas ruas. Fúria virtual é só verborragia que derrama bílis na tela.

Cidinha da Silva, mineira de Belo Horizonte, é escritora. Autora de “Racismo no Brasil e afetos correlatos” (2013) e “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” (2014), entre outros.

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