Vítimas de abuso acham, nas redes, espaço para denúncia

06 de julho, 2016

(Diario de Pernambuco, 06/07/2016) Cada vez mais pessoas expõem publicamente estupros sofridos na internet, na tentativa de aliviar carga negativa de traumas

“Quando minha mãe saía para ir ao mercado, meu pai me trancava em um quarto com ele, me colocava na cama ao lado de uma arma e me obrigava a estimulá-lo sexualmente com as mãos”. Assim se inicia o relato de Lindinere Silva, 48 anos, que encontrou na carta postada no CuriosaMente, escrita por uma filha que sofreu abusos para a mãe, a determinação necessária para relatar pelo que também passou.

Com ameaças de ver a mãe e os sete irmãos mortos, Lindinere diz ter sido coagida a aceitar a situação abusiva à qual era submetida pelo próprio pai. “Minha mãe, que não sabia das ameaças com armas que eu sofria, me desprezava e dizia que eu era a culpada daquilo e deveria até gostar da situação. Hoje sei que o meu pai que era o culpado pelo meu sofrimento e da minha mãe”. A história de Lindinere, hoje mãe e avó, ficou então marcada pela violência sexual e psicológica que sofreu durante sete anos da infância e que havia guardado para si durante o resto da vida, até o momento de desabafo na rede social Diario. “Eu até já tinha contado para a família e para uma amiga muito próxima, mas expor em público, nunca. Agora sei que contar alivia e pode ajudar outras pessoas que também passaram por isso”.

Casos de agressão sexual e psicológica, como o vivido e relatado por Lindinere, apesar de brutais e injustificáveis, são frequentes no Brasil e tornam o país um local perigoso para mulheres. Segundo dados da Secretaria de Defesa Social (SDS), apenas nos primeiros cinco meses de 2016 já foram registrados 818 estupros em Pernambuco, uma média de um caso a cada quatro horas e meia – mais de cinco casos por dia. Entretanto, esse número não revela a quantidade real de casos existentes, visto que muitas mulheres não tornam públicas nem formalizam denúncias contra os agressores por medo de possíveis retaliações.

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A professora de psicologia da UFPE Luciana Veras explica que não relatar promove a manutenção do cenário de agressão, mas para expor e denunciar o caso a vítima precisa ter forças para romper com o ciclo de abusos. “A mulher precisa desconstruir muitos fantasmas para ter a coragem de falar, como sentir-se culpada e achar que fez algo para provocar aquilo, ou ter que lidar com a dúvida do que vai acontecer na família a partir da exposição do caso e dela mesma, de como a sociedade vai passar a enxergá-la depois disso”, ressalta.

Segundo Luciana, ver que algumas vítimas tiveram coragem de expor relatos incentiva as outras a não se conformarem com a situação de agressão, tornando também o seu caso público e fortalecendo outras mulheres que possam ter passado pelas mesmas experiências abusivas. Com isso, a professora pontua a importância de haver um canal de fala que dê atenção a todo e qualquer relato, inclusive aos feitos por crianças, que não fazem ideia da situação pela qual estão passado. “É de uma violência atroz quando a mãe ou a cuidadora não dá credibilidade à criança. Ignorar as queixas só vai corroborar com a punição de sofrimento que a criança já está sofrendo” completa.

O grito de milhares que obrigou o país a, enfim, ouvir

A universitária Bárbara Pereira, de 19 anos, integrante do movimento A Universidade é Pública, Meu Corpo Não, aos 13, foi agarrada a força por um desconhecido e forçada a beijá-lo. Viu na campanha #PrimeiroAssédio a coragem necessária para trazer a público a agressão pela qual passou. “Só anos depois do ocorrido, percebi que isso poderia ter sido denunciado e alguma providência tomada, mas já era tarde – a única coisa que lembro do agressor é que ele parecia ser muito grande, talvez pela minha impotência no momento. Decidi então fazer o que eu poderia fazer à essa altura: expor meu relato para outras”.

Bárbara Pereira / Facebook

Bárbara, que chegou a ser chamada de “exagerada” quando postou o relato em seu Facebook, enfatiza que a exposição de casos é importante para que todas as meninas saibam que qualquer ato libidinoso forçado é estupro, e, assim, percebam que sofrer agressões não é normal. “Quando ocorreu comigo, pela pouca idade e pelo tabu que é o assunto, eu não me dei conta de que naquele momento havia sido estuprada. Só vim perceber e relatar ano passado, e até fiquei com vergonha no início, mas contar me deixou mais leve. Foi como se eu tivesse aliviando tudo pela ponta dos meu dedos”, desabafa.

A campanha #PrimeiroAssédio foi uma ação criada pelo coletivo feminista Think Olga, em outubro de 2015, após uma das participantes do MasterChef Júnior ter sido alvo de comentários com teor sexual, mesmo tendo apenas doze anos. Assim como a carta postada pelo CuriosaMente, a campanha abriu na internet um espaço de fala e desabafo às mulheres que tiveram a infância injustamente atravessada por interações de cunho sexual. A gerente de conteúdo e comunidade da Think Olga, Luíse Bello, explica que é por meio da exposição dos relatos que as vítimas culpabilizadas pelo estupro percebem que o que aconteceu foi, na verdade, errado. “Saber que, como as autoras dos outros relatos e as criadoras da campanha, há pessoas que vão ficar do lado delas já é um estímulo às vítimas para contar pelo que passaram. Elas buscam ouvidos que estejam abertos a escutar o caso sem questionar e julgar”, diz.

É por meio do relato nas redes sociais que muitas mulheres falam pela primeira vez sobre agressões sexuais e psicológicas vividas, investigando o passado sem culpa e enxergando que foram vítimas de situações pelas quais não deveriam ter passado. “As vítimas têm vergonha de falar sobre isso com pessoas que amam, familiares e amigos, porque o assunto sempre foi um tabu. Os abusos acontecem desde muito cedo; as conversas sobre esse tema, não”, finaliza Luíse. Com mais de 82 mil relatos, a campanha #PrimeiroAssédio é um expoente do movimento de desabafo e, recentemente, inspirou uma versão internacional, em inglês. Terapêuticos, por permitir compartilhar a carga do trauma sem receber imposições de questionamentos ou culpas, os relatos frequentes de estupro expostos nas redes sociais ajudam a entender a real dimensão do problema no Brasil.

Giovana Ferreira

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