O que eles mereciam…, por Gilles Lapouge

14 de fevereiro, 2016

(O Estado de S. Paulo, 14/02/2016) Vítimas de violência doméstica, duas mulheres reagem e matam seus respectivos maridos. Agiram em legítima defesa ou são apenas assassinas?

Jacqueline Sauvage era agredida cotidianamente, havia trinta anos, pelo marido. Este, quando não batia na esposa, violava as filhas. Um dia, ao ser espancada, matou seu algoz. Levada à Justiça, foi condenada a 10 anos de prisão.

A indignação tomou conta do país. Uma petição enviada aos tribunais pediu a absolvição de Jacqueline. Foram 400 mil assinaturas. O presidente Hollande se interessou pelo caso, mas hesitou porque não via com bons olhos o direito de conceder o indulto, conforme sua função lhe permitia, por considerá-lo uma prerrogativa remanescente da época da monarquia. No entanto, acabou por agraciar Jaqueline Sauvage. Mas não anulou a condenação; contentou-se com a suspensão da aplicação da pena.

Num caso semelhante, julgado pelo tribunal de outra cidade, a sentença dada pelos juízes foi bem diferente. Uma mulher (Alexandra Lange), também assassina do marido, foi inocentada. Dois pesos e duas medidas! A diferença entre esses dois veredictos é chocante. Eles mostram os limites da Justiça. “Verdade do lado de cá dos Pirineus, erro do lado de lá”, disse o filósofo Blaise Pascal. Mas os juízes retrucam: embora nos dois casos o marido tenha sido morto, as circunstâncias do assassinato não são nada parecidas.

Alexandra Lange, que foi absolvida, matou o marido quando ele mais uma vez a agredia. Ela utilizou uma faca que agarrara no meio da briga. Por seu lado, Jacqueline Sauvage, que pegou 10 anos de cadeia, matou o marido violento friamente, não no decorrer de uma luta, mas num momento de calma. Além disso, o matou com um tiro de fuzil, pelas costas.

Eis por que, aos olhos da Justiça, num caso se deve falar de “legítima defesa” e, portanto, de uma possível absolvição, e no outro de um assassinato. Essa distinção será legítima? Muitos, principalmente mulheres, a recusam. O inferno sem fim a que são submetidas essas esposas espancadas as coloca, na opinião de muitos, numa “situação de legítima defesa” perpétua.

No Canadá, a Corte Suprema absolveu a sra. Lavallée, que matou o marido quando este saía do quarto e estava de costas. O caso fez jurisprudência. Os canadenses consideram que os homens violentos às vezes têm momentos de “remissão”, mas que sua loucura pode despertar a qualquer momento. Por consequência, a mulher está constantemente em perigo, constantemente em situação de legítima defesa.

Alguns juízes contestam a visão canadense. No caso de Jacqueline Sauvage, foi adotado o seguinte argumento: “A França, e ela pode se orgulhar disso, foi uma das primeiras nações a abolir a pena de morte (em 1981). Com que direito uma mulher espancada poderá restabelecer, a seu favor, essa mesma “pena de morte’?

Admitamos que esse raciocínio é um tanto falacioso.

Consulto as estatísticas. São assustadoras. A cada ano, 216 mil francesas são vítimas de violência doméstica. E apenas 15% delas a denunciam à polícia. “Elas têm vergonha de ser espancadas, vergonha de ser torturadas!”

Em 2014, na França, 140 mulheres foram mortas pelo companheiro. A metade dessas mulheres foi morta pelo marido. Calcula-se que, na França, uma mulher é assassinada pelo marido a cada três dias. A esses números é preciso acrescentar os suicídios. Mas não esqueçamos que muitas mulheres se suicidam para escapar das mãos do seu algoz doméstico.

A França será uma exceção? Absolutamente não. Ela está na média. Em 2006, 5% das mulheres japonesas foi vítima de violência do marido, enquanto na Etiópia essa porcentagem chegou a 59% das mulheres. A França está na metade do caminho. Anualmente, 17% das mulheres são vítimas de violência doméstica.

Alguns homens rebatem dizendo que a violência está dos dois lados. Não é verdade: em um ano, contam-se cerca de 30 mulheres que decidem agir e matam seus esposos. Mas elas decidem agir porque sua vida é um pesadelo ignóbil, interminável, sem saída.

Se eu fosse um homem, não me orgulharia dos meus congêneres. Às vezes, esse sexo é desprezível. E, como sou um homem…

Gilles Lapouge/ Tradução Anna Capovilla

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