(Correio Braziliense, 05/05/2016) Por que é tão difícil para a mulher romper o ciclo de violência?
Quem trabalha com violência doméstica não pode ter preconceitos. Há vários casos em que a mulher insiste em permanecer num ambiente de violência, eu diria até que é a grande maioria. Elas não podem ser julgadas por isso. A gente sabe por que permanecem. Por dificuldades financeiras, porque estão muito fragilizadas para romper aquela relação, por falta de uma rede de apoio, de família e amigos. Há vários casos em que elas são sozinhas, não têm para onde ir. Muitas acham que ele vai mudar. É difícil romper esse ciclo. É necessário um trabalho de emponderamento da mulher, de tratamento. O Judiciário precisa de uma equipe multidisciplinar. Às vezes, elas querem revogação da medida protetiva porque recebem ameaça do marido ou da família dele. Como juíza, não posso ouvir isso e não fazer nada. Não posso fazer isso moralmente. Eu preciso resolver. Elas não saem daqui sem resposta. Preciso pedir alimentos, inseri-las nos programas sociais etc. A parte complicada é que o Judiciário precisa fazer um papel social que compete ao Estado. Um grande parceiro é o Provid (programa da PM que atua diretamente com as vítimas que têm medidas protetivas). Eles os anjos da guarda das mulheres.
Por isso a senhora decidiu fazer a Ação Solidária Rompendo o Silêncio (no sábado passado, reunindo palestrantes que explicaram os direitos femininos, na Fercal)?
O juiz que trabalha com violência doméstica tem de sair do gabinete. Eu não tenho condições de trabalhar só com números, processos e estatísticas. Eu poderia falar: “Tenho tantos processos, tantas audiências por dia, minha vara está em dia”. Mas isso não basta. Tem que levar a lei para fora, esclarecer. Temos de usar o Poder Judiciário para levar informação até essas mulheres.Violência doméstica, ou você ama ou odeia. E eu sou apaixonada pelo tema.
Ao longo dos anos, percebe-se algum tipo de evolução? A mulher denuncia mais? Os homens agridem menos?
Acho que existe uma maior conscientização. A Lei Maria da Penha é completa, prevê tudo, foi muito minudente no combate à violência. A dificuldade é nossa, dos operadores do direito. Ponho a responsabilidade em nós, juízes, promotores, advogados. Porque existem alguns procedimentos na sala de audiência que não evoluíram. A maior crítica que eu faço é a falta de rotina única para as varas, nos juizados de violência doméstica. Isso gera insegurança jurídica e desigualdade para a vítima e para o ofensor. Eu atuo na vara de um jeito, mas outro colega e outro juiz de outra vara atuam de outra forma, ou de outro estado. Já teve caso de ligar para outro estado e informarem que lá não se aplicava medida protetiva, que mandavam a vítima sair do estado. A lei tem quase
10 anos e ainda há uma dificuldade de estabelecer essa rotina. Aqui mesmo no DF tem
tratamentos diferentes. O juizado não poderia agir de acordo com a opinião de cada magistrado e de cada membro do Ministério Público.
A senhora sente o machismo dentro da sala de audiência?
Como magistrada, mulher, conduzir uma audiência de violência doméstica é difícil. Eles me olham pensando que eu sou mulher igual àquela que ele bate. Já tive caso de um que fez um gesto obsceno quando saiu de uma sala de audiência. Eu o mandei voltar, ele foi conduzido à delegacia e respondeu por desacato. Na delegacia, ele disse que não fez o gesto para a juíza, que fez para a Lei Maria da Penha. Eles dizem: “Eu não sou bandido, eu nunca roubei, nunca matei, nunca furtei”. E eu digo: “Mas o senhor bateu na sua esposa”. E ele responde: “Mas ela é minha esposa”.
Os agressores se arrependem?
Muito pouco. Normalmente, eles negam, falam que revidaram a uma agressão. Num caso específico, eu perguntei qual o tamanho da esposa. 1,50m. E o dele? 1,80m. Como uma mulher de 1,50m vai dar uma surra em alguém de 1,80m? Eles não admitem estarem sendo processados por um crime de violência doméstica. Ou dizem que não se lembram por causa do álcool ou do entorpecente. O álcool é um fator de risco importante para a violência doméstica, mas não é atenuante. Não justifica.
A maior parte dos processos da vara é de homens que agridem mulheres?
É engraçado. Às vezes, há colegas que dizem: “Ah, mas só falam de violência contra a mulher? E quando é a mulher que agride?” Eu digo que temos de trabalhar com a maioria. E a maioria absoluta é essa. Há todo tipo de caso: abuso de crianças, violência contra idosos, há também casais homossexuais mulheres, que uma bate na outra; e contra transsexuais. Mas 90% dos casos são de marido ou namorado ou ex contra as mulheres.