(Folha de S. Paulo, 04/11/2015) O atual estágio de barbárie do sistema prisional brasileiro produziu mais uma atrocidade no campo dos direitos humanos. Em resumo, uma mulher, supostamente doente mental, estava grávida, em uma prisão comum, numa cela de isolamento, na qual teve sozinha sua filha.
Posteriormente foi levada ao hospital com o cordão umbilical ainda preso à criança, a qual foi encaminhada a um abrigo. Sob o argumento de que se tratava de uma usuária de crack com crise de abstinência, a presa foi novamente colocada no isolamento.
Os fatos foram comprovados e a documentação demonstra que não se trata de nenhuma presa de alta periculosidade. A diretora do presídio feminino no Rio de Janeiro foi temporariamente afastada, porém não há notícias do encaminhamento da mulher presa para tratamento de saúde.
Foi descumprida a Portaria que institui o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas no SUS à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, bem como a lei da Reforma Psiquiátrica, que garante direitos às pessoas portadoras de transtornos mentais.
Os direitos humanos das mulheres presas estão previstos nas Regras de Bancoc, definidas pelas Nações Unidas em 2010 e ratificadas pelo Brasil.
Seguindo os princípios norteadores das Regras Mínimas para Tratamento de Reclusos (ONU, 1955) e das Regras Mínimas das Nações Unidas para Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio) (ONU, 1990), as normas de Bancoc reconhecem que uma parcela das mulheres infratoras não representa risco à sociedade e seu encarceramento pode dificultar sua reinserção social.
A Regra é clara ao determinar que não se aplicarão sanções de isolamento, instrumentos de coerção ou segregação disciplinar a mulheres grávidas, nem a mulheres com filhos ou em período de amamentação. Não são permitidas sanções disciplinares para mulheres presas em geral que correspondam à proibição de contato com a família, especialmente com as crianças.
Mulheres não deverão ser separadas de suas famílias e comunidades sem a devida atenção ao seu contexto e laços familiares. A análise caso a caso deve ser conduzida com delicadeza e fundada no melhor interesse da criança, nos direitos de proteção à mulher contra qualquer forma de violência e no direito aos vínculos familiares.
O Brasil instituiu, em janeiro de 2014, a Política Nacional Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No mesmo mês, foi publicada a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE), a partir de um enfoque de gênero. Porém, a letra da lei de nada valerá se não houver interesse sócio-político para aplicá-la.
O alto estigma que cerca a população carcerária, ainda mais a usuária de crack, etiqueta um grupo de “indesejáveis”. Ao mesmo tempo em que o Estado exige que a presa se insira nas regras uma comunidade moral, pela suposta ressocialização, reiteradamente não são aplicadas essas mesmas normas morais para esse grupo extremamente vulnerável.
Portanto, a questão ética da efetividade dos direitos da mulher presa e seus filhos representa atualmente um enorme desafio na implementação das políticas públicas. Identificar a responsabilidade institucional pelos danos causados e evitar outras atrocidades dirigidas àqueles que estão sob custódia do Estado é mais do que um imperativo moral; é uma exigência por justiça.
Luciana Simas e Miriam Ventura são advogadas e professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Acesse o PDF: Professoras da UFRJ escrevem sobre violações contra mulheres presas (Folha de S. Paulo, 04/11/2015)