(UOL, 14/04/2014) “Branco significa puro” argumenta a cantora nigeriana Dencia, durante uma entrevista para o canal britânico de televisão “Channel 4”, em defesa do creme clareador de manchas escuras Whitenicious, desenvolvido por ela. O produto se tornou polêmico após a artista negra aparecer com a pele significativamente mais clara após usá-lo, causando um furor entre jovens africanos que, como a estrela pop, desejam se tornar brancos.
O site do cosmético apresenta informações vagas sobre sua composição, informando apenas a presença de ingredientes naturais de alta qualidade. O rótulo do creme clareador menciona extrato de aloe vera e vitamina C, componentes que, segundo a dermatologista da Unifesp (Unifersidade Federal de São Paulo) Valéria Petri, não são capazes de promover um clareamento extenso total quanto o apresentado pela estrela pop africana. Ela ainda alerta que o uso de vitamina C em grande quantidade pode provocar alguns tipos de câncer de pele.
A dermatologista acredita que o Whitenicious contenha hidroquinona em sua fórmula, derivado da borracha com grande potencial carcinogênico que é proibido no Brasil pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). De acordo com ela, a substância também pode provocar lúpus (uma doença autoimune), hipertensão e até mesmo a modificação do DNA com prejuízo a gerações futuras. “Não há sentido em clarear uma pessoa negra, porque ela foi preparada pela natureza com aquela quantidade de pigmento para ser protegida do sol”, afirma Valéria.
Mesmo com tantos riscos à saúde, jovens africanos, indianos e norte-americanos estão pagando até U$S 160 por um frasco de 60 ml do cosmético da empresa de Dencia, com sede na Califórnia, nos Estados Unidos. O produto também tem causado a curiosidade de alguns brasileiros, que aparecem pedindo informações em páginas de redes sociais de sites especializados em importação.
Atacada pela imprensa internacional e por comunidades negras, Dencia rebate dizendo que a polêmica alimenta suas vendas e usa o Twitter para provocar seus críticos, como ao retuitar uma seguidora: “o creme é para manchas escuras, mas se você sentir que todo o seu corpo é uma mancha escura, use nele todo”.
“Vocês são tão rápidos porque passam muito tempo fugindo da polícia?” (em tradução livre), diz uma das placas da campanha contra o racismo organizada por estudantes de Harvard, EUA. Por meio de um projeto fotográfico publicado no Tumblr, os alunos se manifestam mostrando frases com comentários racistas já ouvidos por eles Leia mais Reprodução/itooamharvard.tumblr.com
Comunidade negra reflete sobre a autoestima
Para a cantora Sandra de Sá, este tipo de produto pode abalar a autoestima do negro, mas a palavra-chave deve ser consciência. “Não sou contra alisamento de cabelo, por exemplo, desde que seja feito de forma consciente”, e alerta: “pior que o preconceito, é o complexo”.
A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) lembra que todos têm direito a se submeter a tratamentos de beleza e que alisamento de cabelo é um procedimento procurado não apenas por negros, mas por pessoas de diferentes etnias. “Não podemos chegar ao ponto de perder nossa identidade”, afirma ao referir-se ao clareamento de pele da população negra.
O gerente de projetos da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Felipe da Silva Freitas afirma que discutir por que os negros não são valorizados como belos na sociedade é fundamental para entender o interesse por esse tipo de produto: “É lamentável que este clareador de pele se beneficie dos problemas que o racismo provoca na autoestima das pessoas negras. E alerta: “existe uma tendência negativa de responsabilizar a pessoa negra, que é vítima do racismo, pela reprodução do racismo”.
Já o músico Macau –compositor da música “Olhos Coloridos”, que ganhou fama na voz de Sandra de Sá– acredita que, embora os negros brasileiros tenham avançado nos últimos anos, muitos também queiram clarear a pele com a intenção de abrir as portas da sociedade. “Na hora de procurar emprego, por exemplo, o negro vai concorrer com o branco, por isso ele imita a roupa e o cabelo do branco”, afirma Macau. “O negro deve deixar os porões da sociedade e abandonar a cruz da escravidão”, complementa o músico.
O rapper paulistano Max Dmn acredita que o hip hop tem contribuído para que o negro brasileiro aceite sua cor e seu cabelo e lamenta que exista um produto capaz de clarear a pele das pessoas. Ele associa a baixa autoestima dos negros à falta de referência para as crianças da etnia: “Você liga a TV e só vê desenhos animados com pessoas brancas de cabelo liso e artistas brancos. Se não houver orientação da família sobre o valor das diferenças étnicas, é claro que a criança vai querer reproduzir o mundo maravilhoso que vê na TV”, analisa Dmn.
Manifestações de racismo não devem intimidar os negros
Benedita da Silva, que hoje tem 72 anos, diz que o cargo político não a livrou do preconceito e recorda que, na infância, a discriminação racial a fez ter vontade de não ser negra: “tive atitudes horrorosas de negação da cor da minha pele. Mas o apoio de uma criança branca me fez dar a volta por cima antes de chegar à adolescência”.
Diferentemente da deputada, Sandra de Sá diz que nunca se apavorou com preconceito, mesmo na ocasião em que, há 28 anos, foi obrigada a usar o elevador de serviço para subir ao apartamento do padrinho de seu filho Jorge de Sá, o músico Cazuza. De acordo com a cantora, ela e seus pais agiram com tranquilidade, já sabendo o que aconteceria quando o porteiro do prédio, que também era negro, proibiu que eles subissem no elevador social: “O Cazuza e a mãe dele, a Lucinha Araújo, desceram querendo prender o cara”, lembra com bom humor.
Macau conseguiu transformar a revolta do episódio em que foi vítima de racismo, no início da década de 80, na letra de uma música que virou um dos principais hinos da comunidade negra. O músico conta que estava com um amigo em uma exposição escolar no Estádio do Remo da Lagoa, na zona sul do Rio de Janeiro, quando foi abordado por um policial.
“Eu apresentei minha identidade e ele queria que eu o acompanhasse. Uma discussão se iniciou quando eu não quis acompanhá-lo. Então eu fui chamado de crioulo e apanhei”. A confusão terminou na delegacia onde Macau passou a noite até ser libertado por um padre. “Quando saí de lá, fui para a praia do Leblon e chorei”, lembra ao contar como a letra de “Olhos Coloridos” surgiu em sua cabeça.
Mais de 30 anos se passaram e histórias como a de Macau ainda se repetem, como a do ator Vinícius Romão, preso por engano no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014. “Estes episódios recentes demonstram que a luta contra a discriminação não está concluída na sociedade”, afirma Freitas.
Max Dmn lembra que há 15 dias saía de uma agência bancária quando uma mulher em sua frente se virou para trás e segurou a bolsa assustada: “Eu também me assustei e olhei pra trás com medo, mas percebi que era pra mim que ela estava olhando, era a mim que ela temia”, conta o rapper que lamenta ter ouvido da mulher um “obrigado”, ao invés de “desculpa”, quando ele disse a ela que não iria assaltá-la.
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