Cresce número de mulheres exploradas em regime análogo à escravidão

11 de junho, 2015

(G1, 11/06/2015) Dados obtidos com exclusividade pelo G1 compõem novo perfil no país. Nº de mulheres libertadas chega a 10%; veja a origem dos resgatados.

Os jovens já não são maioria; os analfabetos, também não. E cada vez mais mulheres compõem o grupo de libertados em condições análogas à escravidão no país. É o que mostram dados exclusivos do Ministério do Trabalho, tabulados a pedido do G1 – veja a página especial.

O perfil dos resgatados pelos grupos móveis de fiscalização tem mudado ano a ano. Em 2007, 56% dos libertados no Brasil eram jovens. Em 2014, o grupo deixou de compor a maioria: 46% dos resgatados possuíam até 29 anos.

Em relação à escolaridade, os dados mostram uma mudança ainda mais significativa. Em 2007, 44% dos trabalhadores eram analfabetos, ante 14% em 2014 – no país, a taxa é de 8,5%. No ano passado, havia ainda duas pessoas com ensino superior completo, fato inexistente sete anos antes.

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Para o procurador Jonas Ratier, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, um foco maior da fiscalização nos centros urbanos explica os indicadores. “Em 2007, por exemplo, em uma só operação, foram resgatados mais de mil indígenas, de várias aldeias, a grande maioria analfabeta. Foi uma época também de blitzes concentradas em usinas de álcool, sendo os resgatados trabalhadores predominantemente rurais. A gente chegou a fazer uma libertação grande em uma usina em que nenhum dos trabalhadores sabia escrever nem assinar o nome. O filho de um deles que ajudou na hora da rescisão.”

Mesmo com a diminuição do número de analfabetos, a baixa escolaridade ainda prevalece: 50% tinham até o 5º ano incompleto em 2014. “Esses números nos envergonham. Trata-se de uma questão estrutural do país. Só com educação a gente conseguirá sair desse ciclo vicioso de exploração do trabalhador. Hoje, como eles não têm o básico, a formação de primeiro grau, não conseguem nem sequer fazer um curso de qualificação, se inscrever no Pronatec”, diz Ratier.

Mulheres
Outro dado que chama a atenção é o que diz respeito às mulheres. Em 2007, apenas 3% do total de libertados eram do sexo feminino, contra 10% no ano passado.

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Para o coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, o dado também tem relação com o aumento das fiscalizações nas cidades, especialmente nas oficinas de confecção. “Na área rural, as mulheres normalmente atuam como cozinheiras na frente de trabalho ou catando bitucas (os restos da cana), um número muito baixo.”

Quanto à origem dos trabalhadores, é possível perceber um aumento do aliciamento no Sudeste. Em 2007, apenas 4% eram provenientes de um dos quatro estados da região; em 2014, o número subiu para 19% (quase 1/5 do total). O Nordeste continua líder (se, em 2007, 42% foram arregimentados na região, em 2014, foram 50%) – veja o mapa com todas as cidades de residência dos resgatados.

O levantamento do Ministério do Trabalho foi feito com base nos dados referentes ao pagamento do seguro-desemprego. O direito é concedido aos trabalhadores que são submetidos a condições análogas à escravidão, acabam resgatados pelos grupos móveis e não possuem renda própria. São três parcelas mensais no valor de um salário mínimo cada uma.

Em 2007, 5.610 trabalhadores foram cadastrados no sistema; em 2014, foram 1.440.

Anderson Matsuura (Foto: Arte/G1)

‘Escravo de luxo’
Um dos libertados no ano passado, Anderson Matsuura é um retrato dessa mudança de perfil. Resgatado em um navio de luxo da MSC Cruzeiros, ele tem 34 anos e ensino superior incompleto. Além do português, fala inglês, italiano, espanhol e japonês. Sua mulher, Letícia, que também foi libertada na operação realizada na Bahia, junto com outros nove tripulantes, tem 24 anos e um curso universitário inacabado.

Os dois foram resgatados após relatarem rotinas extenuantes de trabalho, ameaças, assédio moral e condições subumanas de alimentação. Matsuura emagreceu 14 quilos durante os três meses em que esteve embarcado e teve uma lesão causada pelo excesso de peso que era obrigado a carregar.

“Havia uma perseguição por parte do nosso chefe, que era filipino e dizia que ‘todo brasileiro era vagabundo’. Ele colocava a gente no horário de folga para fazer reunião. Ligava de madrugada para fazer cobranças. Em apenas dois dias, eu tive que trabalhar 36 horas e ainda era obrigado a assinar uma folha de ponto falsificada. A comida não era a mesma dos passageiros, era de péssima qualidade, tinha galinha com pena ainda, barata. Teve uma hora que a situação ficou insustentável”, conta Matsuura, que trabalhava como camareiro no navio.

Mais de um ano depois do resgate, Matsuura vive hoje como autônomo no ramo da informática em Fortaleza (CE). Ele diz que não se arrepende de ainda jovem ter largado a faculdade de engenharia química para trabalhar em embarcações e que planeja agora cursar direito. Rejeita, no entanto, qualquer possibilidade de voltar a trabalhar em um navio. “Era uma paixão. Mas o sonho acabou.”

“Eu fico indignado que uma empresa grande como a MSC, que faz toda uma propaganda voltada às famílias, não dê condições humanas de trabalho. Hoje, não guardo mágoa e não quero causar nenhum dano patrimonial à empresa, pelo contrário, ela gera empregos. Queria apenas que ela olhasse para seus trabalhadores, fosse mais humana.”

A ação coletiva em favor dos trabalhadores resgatados do navio da MSC deve ter um desfecho nos próximos dias, quando deve ser proferida a decisão da juíza Priscila Cunha Lima de Menezes, da 37ª Vara de Salvador.

Em nota, a MSC Cruzeiros informa que, durante a temporada 2013/2014, seus quatro navios  que estiveram no Brasil passaram por intensas e repetitivas inspeções por parte do Ministério do Trabalho e Emprego e que, dos 4.181 tripulantes, 1.243 eram brasileiros. “Após análises detalhadas de milhares de folhas de documentação e centenas de entrevistas com tripulantes, no dia 1º de abril de 2014 o Ministério do Trabalho e Emprego esteve a bordo do MSC Magnifica e alegou irregularidades na jornada de trabalho de 13 tripulantes brasileiros, solicitando-os a desembarcar. Destes, 11 aceitaram desembarcar, mas dois se recusaram e decidiram continuar trabalhando a bordo.”

“A MSC Cruzeiros reitera que está em total conformidade com as normas de trabalho nacionais e internacionais e está colaborando com as autoridades competentes. Sendo assim, a MSC repudia as alegações feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego e já apresentou sua defesa. Cabe ainda mencionar que, durante a última temporada brasileira 2014/2015, diversas inspeções foram conduzidas sem que qualquer irregularidade fosse constatada”, informa.

A empresa diz que, “como parte do contínuo processo de aperfeiçoamento, entre outras medidas, contratou um profissional de Recursos Humanos para cada navio, de modo que os tripulantes de todas as nacionalidades possam receber o apoio e o suporte necessários durante a permanência a bordo das embarcações”.

Desafios
Jonas Ratier diz que ainda há um longo caminho para que o país erradique o trabalho escravo contemporâneo. “O Estado brasileiro, por meio de políticas públicas de combate ao trabalho escravo, principalmente a repressão, é exemplo internacional. Mas na parte da prevenção e da reinserção dos trabalhadores ainda deve. Mais ações são necessárias para que eles não voltem mais à cadeia da exploração”, afirma.

Anderson e Letícia, na Grécia, durante uma das viagens a trabalho (Foto: Anderson Matsuura/Arquivo pessoal)

Anderson e Letícia, na Grécia, durante uma das viagens a trabalho (Foto: Anderson Matsuura/Arquivo pessoal)

Thiago Reis

Acesse no site de origem: Cresce número de mulheres exploradas em regime análogo à escravidão (G1, 11/06/2015)

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