E se a dra. Valéria não fosse mulher e negra?, por Irapuã Santana do Nascimento da Silva

11 de setembro, 2018

Correu por todas as redes sociais vídeos de um caso estarrecedor de racismo e violação às prerrogativas institucionais da OAB.

(Jota, 11/09/2018 – acesse no site de origem)

A Dra. Valéria Santos compareceu com sua cliente a uma audiência do III Juizado Especial Cível de Duque de Caxias. Segundo relatos, ela não estava em posse de sua carteira da ordem – perdida pouco antes – e a juíza insistiu que encontrasse. Quando retornou, a juíza havia dado a audiência por encerrado, impossibilitando o acesso aos autos e à ata.

Diante dos diversos abusos ocorridos, a Dra. Valéria afirmou que somente sairia do recinto após a chegada de um representante da OAB. Ao invés disso, a polícia militar foi chamada para retirar a Dra. Valéria do local. (Assista abaixo vídeo publicado pela coluna do Ancelmo Gois, em O Globo).

É possível ver, em um dos vídeos, a advogada sentada no chão da porta da sala de audiências, algemada e completamente desamparada por quem estava à sua volta, apesar de bravamente resistir, expondo uma triste e revoltante situação.

Após um tempo, a OAB finalmente interveio e acompanhou o caso até a delegacia de polícia.

Leia mais: Nota oficial sobre o grave atentado às prerrogativas profissionais durante audiência em Duque de Caxias – RJ (OAB, 10/09/2018)

O caso está repleto de ilegalidades, desde o início. Onde está previsto que a audiência não pode começar sem que o procurador esteja portando sua carteira da Ordem? Ora, se não é uma exigência legal, não poderia ser oponível à Dra. Valéria! (abuso nº 1)

Ao sair para cumprir uma exigência arbitrariamente imposta pela juíza leiga, a mesma pessoa que determinou a execução de um ato ilegal não concedeu tempo hábil para que fosse atendida e deu continuidade à audiência, deixando a autora do processo desprovida de sua advogada. (abuso nº 2)

Quando a Dra. Valéria conseguiu achar sua carteira e retornar à sala, descobriu que havia sido apresentada contestação, bem como já havia terminado a audiência, sem que ela tivesse acesso ao conteúdo da defesa da parte adversa, para poder contrapor seus argumentos. (abuso nº 3)

Diante de tantas irregularidades que seriam capazes de macular o processo com nulidade, a Dra. Valéria requereu a correção naquele momento, a fim de que não precisasse recorrer no futuro. Ao não ser atendida, a juíza leiga deu continuidade a esse lamentável episódio que resultou na prisão da nobre advogada.

A juíza leiga violou o princípio da legalidade, na perspectiva individual, quando exigiu algo que não era necessário para dar início à audiência. Afinal, é lícito ao indivíduo fazer tudo aquilo que não é vedado em lei. A lei exige que um advogado exerça a defesa técnica, mas certamente há várias formas de comprovar que a Dra. Valéria é advogada.

Ao iniciar a audiência sem que a autora estivesse com a advogada, a juíza leiga quebrou o dever de boa-fé, de cooperação, assim como violou o princípio do contraditório e o da ampla defesa. Nessa linha, também feriu o princípio da paridade de armas. Sua função era de estabelecer uma relação processual igualitária para que, caso as partes não chegassem a um acordo, tivessem seus argumentos expostos da melhor maneira possível, envolvendo todos os aspectos do caso em litígio.

Quando a juíza inicia a audiência sem que a parte autora esteja devidamente assistida, demonstra má-fé na medida em que é – no mínimo – presumível que se aguardaria o retorno da advogada.

Quando se encerra uma audiência em que foi apresentada contestação, sem a parte autora tenha acesso ao seu conteúdo, o processo fica claramente desequilibrado. Como alguém vai refutar algo que não teve ciência? Para além dos princípios do contraditório e da ampla defesa, a juíza leiga deliberadamente ignorou o disposto nos artigos 28 e 29 da lei 9.099/95:

Art. 28. Na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes, colhida a prova e, em seguida, proferida a sentença.

Art. 29. Serão decididos de plano todos os incidentes que possam interferir no regular prosseguimento da audiência. As demais questões serão decididas na sentença.

        Parágrafo único. Sobre os documentos apresentados por uma das partes, manifestar-se-á imediatamente a parte contrária, sem interrupção da audiência.

Por fim, ainda é possível identificar uma espécie de venire contra factum propriumpor parte da juíza: como é possível prejudicar outrem por um fato que ela mesma deu causa?

Sabendo que o juizado especial preza pela informalidade e pela efetividade, não haveria prejuízo numa eventual emenda à ata, com a ciência da contestação e posterior manifestação oral em réplica da Dra. Valéria. Entretanto, ao invés de adotar uma postura de composição, indo ao encontro de todos os princípios norteadores do juizado especial, a juíza leiga determinou a saída da aguerrida advogada com auxílio da força da polícia militar.

E, infelizmente, a Dra. Valéria foi algemada e levada para a delegacia.

Nessa curta frase, uma lei federal e uma súmula vinculante do STF foram completamente desrespeitadas.

O art. 7º, IV do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) estabelece que é direito do advogado “ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB”. (grifei)

A Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal contém o seguinte teor:

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. (grifei)

Uma situação na qual a Dra. Valéria exigia o comparecimento de um representante da OAB para fazer valer suas prerrogativas, conforme art. 61, II do Estatuto da OAB, gerou sua prisão sem a presença do representante que ela havia requerido para outra finalidade, com o uso indigno de algemas.

É evidente a ausência de receio de fuga, afinal a Dra. Valéria não queria sair do local, assim como a inexistência de perigo a integridade física de qualquer pessoa.

Então, por que o uso das algemas? Por que chamar a polícia? Por que não dar vista dos autos à parte do processo? Por que exigir algo que não é requisito legal?

Será que se não fosse fora da capital fluminense, esse acúmulo de ilegalidades ocorreria? Será que se não fosse com alguém atuando nos juizados especiais existiriam todos esses abusos?

Histórica e empiricamente, em regra, a população negra sofre abusos e violência por parte das autoridades estatais, tratada sem empatia e o devido respeito mínimo. Sabemos também em qual parcela do povo incidem todas as piores estatísticas sociais.

Foi perturbador assistir ao descaso das pessoas ao redor com tamanha situação de injustiça e impotência.

A pergunta do título reverbera na minha mente: será que tudo isso aconteceria se a Dra. Valéria não fosse mulher e negra?

Receio que não.

Irapuã Santana do Nascimento da Silva é Doutorando e Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Assessor de Ministro no Tribunal Superior Eleitoral, Ex-Assessor de Ministro no Supremo Tribunal Federal, Professor da Graduação e da Pós-Graduação do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB), Consultor Voluntário da Educafro, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC) e Procurador do Município de Mauá/SP. Apresentador do Programa Explicando Direito da Rádio Justiça

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