Publicadas em espaços midiáticos de esquerda, as imagens de Latuff e Jaguar reforçam estereótipos que oneram a população negra
(CartaCapital, 03/11/2016 – acesse no site de origem)
Mudam as estações do ano, o ciclo das eleições se refaz, a voz trombeteira de umDonald Trump ressoa no mundo, até um golpe se consolida no país, e as representações de grupos historicamente discriminados permanecem confinadas em prisões de imagens, lembrando a bela expressão da escritora e feminista negra Alice Walker, a despeito de algumas poucas mudanças.
Disso dão testemunho as charges dos renomados Carlos Latuff e Jaguar, veiculadas em espaços expressivos da esquerda brasileira algumas semanas atrás. Como era de se esperar, as duas peças causaram espécie em setores dos movimentos negros.
Na velocidade de um raio, surgiram argumentos que denunciaram o caráter racista de ambas as charges. Com a mesma rapidez, o Le Monde DiplomatiqueBrasil ensaiou uma resposta tentando convencer a plateia de que o racismo está nos olhos de quem vê, assumindo uma postura de diálogo com o movimento negro com a proposição de um debate que se realizou no último 17, na sede do jornal (o resultado do debate não foi nada alvissareiro).
No texto que acompanha a charge no Facebook, o Le Monde retrata-se da seguinte forma:
Recebemos com apreensão os comentários de que havíamos nos tornado racistas. O jornal “Le Monde Diplomatique Brasil” sempre esteve solidário ao movimento negro, às mobilizações das jovens mulheres negras, engajado na campanha contra o extermínio da juventude negra, e em defesa dos direitos de cidadania.
Quanto à capa, nós a consideramos uma iniciativa infeliz e lamentamos ter sido considerada racista e queremos pedir desculpas aos nossos leitores.
Acolhemos a crítica, reconhecemos o erro e entendemos que essas são reações vindas de quem vive na pele, no dia-a-dia, as discriminações odiosas e classistas contra os negros e as negras no Brasil. (…).
Essa retratação do jornal é bastante instrutiva para pensarmos na lógica de funcionamento de estereótipos e estigmas no campo das representações, principalmente do chamado humor gráfico (charges, cartuns, quadrinhos) por não alcançar o engenho do racismo além-fronteiras das intencionalidades e do engajamento político.
Sabemos que nesse território, de produção simbólica de imagens, ao falar somos falados pelos ordenadores que nos ensinam o que é certo e errado, normal e desviante, belo e feio, bom e ruim.
Assim, para triunfar, o racismo não depende da nossa boa consciência, basta apenas que nos coloquemos na rubrica já posta (também classista, sexista, homofóbica, transfóbica). Tendo a linha editorial que tem, é de se esperar, por óbvio, que o Le Monde Diplomatiquehabita, em linhas gerais, o mesmo espectro das reivindicações e lutas da população negra.
A defesa do informativo a partir desse lugar (“O jornal Le Monde Diplomatique Brasilsempre esteve solidário ao movimento negro”) não soterra o problema que a charge de Jaguar trouxe à superfície. A questão mora em outro lugar.
Mas em qual outro lugar?
Pensemos a que se presta a veiculação de charges nos informativos, elemento que tem um longo concurso na imprensa mundial. Desde a aurora do jornalismo elas são um recurso assíduo que, pela chave do humor, firmaram terreno no campo da contestação, do protesto, da zombaria, do sarcasmo – um traço dos tempos modernos, marcados pela confrontação das hierarquias e desigualdades, tendo na atividade noticiosa um agente indispensável para disputa ideológica.
Sabe-se que nem sempre o humor se prestou a esse papel, como nos ensina o filósofo Mikhail Bakhtin. Para o pensador russo, na Antiguidade o humor e o riso eram esteios para suportar os rituais religiosos e oficiais; já na Idade Média tinham um apelo visivelmente popular, eram impulsionados por uma aspiração à liberdade, convidavam as pessoas a abdicarem da formalidade cotidiana. O carnaval se converte em um dispositivo fundamental para o exercício dessa liberdade.
É, digamos, de uma concepção moderna de humor que as charges ganham relevância para denunciar, vilipendiar e detratar os poderes constituídos. O fato de elas serem bastante utilizadas em tempos de censura demonstra a eficácia que carregam em termos de economia simbólica.
As duas charges em questão aí se enquadram. Elas tentam demostrar como o uso da força e do poder no cenário que se desenha no Brasil e em São Paulo nos levam a uma situação extrema de espoliação, de absoluta subjugação, de destituição dos indivíduos, deformando-os.
Há quem diga que sob esse ponto de vista, as charges não podem ser consideradas racistas, pois dialogam com um dado real: em sendo a população negra a maioria afetada por um programa neoliberal, de estado mínimo, o que presenciamos nas duas imagens são apenas os ecos de um projeto avassalador que encontra amparo numa sociedade estratificada.
No entanto, a monótona repetição de corpos negros nesse tipo de denúncia e a sua ausência em outros espaços de contestação demonstra o quanto essas charges compartilham com um imaginário que é reatualizado pela imprensa, mesmo a dita alternativa, de esquerda, engajada.
Evocando um protótipo (instalação primeira de uma ordem de sentidos) de representação das pessoas negras, tais peças reforçam estereótipos (fixação dessa instalação) que oneram a população negra, colaborando para reduzir as possibilidades de esta população compor um mosaico a respeito da crise, do processo eleitoral, da PEC 241 e seus desdobramentos.
E por que colaboram? Porque não alteram o código já reconhecido e reconhecível, porque não implodem referenciais fáceis de serem interpretados num ambiente em que as hierarquias raciais e de gênero são eixos extremos de diferenciação negativa.
Resulta curioso que as críticas às medidas do governo golpista advindas do chamado campo da esquerda apontam a presença assustadora dos arcaísmos da escravidão nas malhas do presente sem considerar a participação de mulheres e homens negros no debate público.
Muitas mesas de discussão vêm sendo constituídas para se entender a conjuntura do momento, os termos “casa grande e senzala” tornaram-se comum no léxico de muitos ativistas e intelectuais brancos (o articulista da Folha de São Paulo e líder do MTST, Guilherme Boulos, publicou artigo recentemente intitulado “O Brasil de volta à senzala”), mas, ainda assim, a presença/representação do negro continua servindo apenas para ratificar a exorbitância da lógica capitalista de caráter neoliberal.
Essa insistência e redução nos leva a inferir que a discussão sobre o racismo nas charges em análise não se encerra apenas numa questão da imagem (o que já é, por si só, tema de grande monta), mas possui nexo entre esta e as representações do poder que passam na atualidade, como assinalou Foucault, pela luta contra as formas de assujeitamento, contra a submissão da subjetividade.
Sabemos que a imagem não é apenas reflexo de um dado já existente, mas ela própria dá existência às coisas do mundo, o que as converte num requisito fundamental para a implosão de determinados referenciais que insistem em discursos enrijecidos sobre coisas e pessoas.
Certamente, a potência revolucionária supõe a implosão de um imaginário reducionista, sob pena de nossas bem intencionadas críticas e denúncias serem tão ou mais reacionárias que o alvo que perseguimos.