Mulheres outra vez: a escolha pelo renascimento após sofrer violência doméstica

02 de junho, 2025 Brasil de Fato Por Gabrielle de Paula

Vítimas ainda relatam a dificuldade de identificar os sinais, a revitimização pelo Estado e as dores vividas

Embora o feminicídio seja o lugar mais distante em que a tristeza pode chegar, muito além das agressões físicas, o alto índice de violência contra a mulher assume múltiplas formas. São as pressões psicológicas, o aumento da tensão no relacionamento e os ataques morais que, muitas vezes, iniciam o ciclo de uma violência que até soa inusitada quando pensamos no termo “doméstica”. Pois mesmo que aquilo que possa estar dentro de casa seja algo privado, a violência contra as mulheres sempre se mostrou um problema social.

Em um país onde, no ano passado, a cada 24 horas, em média, 13 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência (Rede de Observatórios da Segurança), as denúncias seguem sendo o principal grito feminino, depois de tanto esforço para se ficar em silêncio.

Dez mortes em um único feriado

Em março, a Lei 13.104/2015, Lei do Feminicídio, completou 10 anos. Em outubro de 2024 foi atualizada, elevando a pena até 40 anos de prisão. O “Pacote Antifeminicídio”, como ficou conhecido, também aumentou as penas para lesão corporal, injúria, calúnia e difamação, se cometidos em contexto de violência contra a mulher. Ainda que seja um instrumento fundamental para a punição dos agressores, especialistas apontam que somente a lei não tem força para acabar com um problema estrutural.

Para Ivana Machado Battaglin, Promotora de Justiça (MP-RS) e coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, a lei foi muito importante para dar visibilidade a um fenômeno que precisava ser nomeado e para que se tivesse estatísticas um pouco mais precisas a respeito desse tipo de crime, que ficava mascarado com os demais homicídios. “A cultura machista, que é o que mata as mulheres, ela não muda porque a lei entrou em vigor. Nós precisamos de políticas públicas mais eficazes naquilo que a própria lei Maria da Penha fala, que é o da prevenção. E nisso o Estado brasileiro está pecando, pois por esse viés, a gente vê que os números não cedem. A gente segue vendo um cenário desolador”, diz Ivana.

De acordo com o levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mais de 21 milhões de brasileiras com 16 anos ou mais relataram ter sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Além disso, o relatório apontou que nove em cada dez agressões contra mulher foram presenciadas por alguém: 47,3% eram amigos ou conhecidos das vítimas, 27% eram filhos e 12,4% tinham outro grau de parentesco.

No Rio Grande do Sul, o Mapa divulgado pela Polícia Civil mostrou que houve queda no número de feminicídios no estado, com 72 casos registrados em 2024, uma redução de 15% em relação ao ano anterior, e 235 tentativas. No entanto, apesar da diminuição no índice, neste ano foi revelada uma verdadeira crise no atendimento às vítimas de violência, após o feriado de Páscoa, no qual 10 mulheres foram assassinadas por serem mulheres. Para Márcia Soares, diretora executiva da Themis, organização que presta assessoria jurídica às mulheres há mais de trinta anos, a situação no Rio Grande do Sul é alarmante: “Se considerarmos 72 casos em um ano, significa que a cada cinco dias, neste estado, uma mulher é assassinada por ser mulher. Precisamos prestar atenção na subnotificação das tentativas de feminicídio. Há uma desqualificação dos delitos de tentativa de feminicídio para lesão corporal grave, desconsiderando um histórico de violência na vida da mulher. Temos firme convicção de que não foram 235 tentativas”, diz.

No dia 24 de abril, a cúpula da Segurança Pública do Rio Grande do Sul anunciou novas medidas de proteção à mulher, mas problemas como falta de efetivo e a espera de até 8 horas para atendimento seguiam ocorrendo na 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (1ª Deam) em Porto Alegre.

As denúncias de precariedade de atendimento à violência contra às mulheres culminaram na troca no comando do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV) e também do chefe da Polícia Civil, Fernando Sodré.

Vítima de tentativa de feminicídio pelo ex-namorado em 2019, a psicóloga Nádia Bisch lembra que o que a fez desistir da denúncia no primeiro episódio de agressão sofrida, foi a demora na delegacia: “Eu passei o dia inteiro lá. As minhas amigas faziam revezamento para não me deixar sozinha, mas o sistema tava fora do ar e aí eu desisti”. A revitimização pelo Estado, segundo ela, também ocorreu após a tentativa de feminicídio. “Tudo é difícil, no registro, em audiência, no hospital…Saí do hospital público cuspindo sangue, com joelhos quebrados, não fizeram nem o raio x, o médico não levantou da cadeira e eu saí de lá com uma receita de dipirona”.

A situação humilhante foi o que motivou Nádia a construir um projeto de apoio para mulheres vítimas de violência, o Núcleo Lótus, que além do acompanhamento psicológico com valores sociais, também disponibiliza assessoria jurídica. “Eu pensei, ‘se eu, que tenho condições e conhecimento, tô saindo assim, o que sobra para as mulheres que não tem recurso para pegar um ônibus para ir até o Palácio da Polícia?’”, diz.

Depois de uma noite inteira em uma delegacia, após registrar a ocorrência, a designer de interiores, Renata Prates, foi informada de que havia mais de trinta registros do mesmo tipo de agressão contra o ex-namorado, mas os processos não haviam sido levados adiante. “Na hora eu decidi, já que vou morrer mesmo, pelo menos eu vou seguir com a denúncia para todo mundo saber quem é. Eu tinha medida protetiva e ele continuava me perseguindo. Eu não sabia que após fazer o boletim eu tinha que enviar para a Defensoria Pública, ninguém informou. Eu tinha quinze boletins e não tinha nenhuma comunicação entre os órgãos. Aí, depois que enviei, saiu o mandado de prisão”.

Já a assistente social Jeysi Alvarez acredita que teve sorte ao buscar ajuda. Após ser agredida e expulsa pelo companheiro da casa onde viviam, ela contatou a Brigada Militar: “Quem veio atender a ocorrência foram duas brigadianas e fez total diferença naquele momento que eu estava toda machucada, rasgada, com meu corpo exposto. Deu um certo alívio ver duas mulheres me acompanhando. Chegando no Palácio, eu vi que as vítimas todas estavam com policiais homens, eu era a única acolhida por mulheres”, lembra.

Em meio às dificuldades no acolhimento às vítimas, a promotora Ivana Machado aponta avanços nas notificações. “Quando a gente olha os dados, a gente vê um aumento de todas as formas de violências e o próprio relatório [FBSP] traz a explicação de que são as duas coisas: aumento da violência e aumento de notificações, porque hoje as mulheres sabem que não precisam aguentar caladas. Mas quando a gente pensa em denúncia, também precisa de uma estrutura de acolhimento. No caso específico do Rio Grande do Sul, o que faz muita falta é a Secretaria de Políticas para as Mulheres, que fazia toda a articulação entre os órgãos”.

“Para que as mulheres possam romper o ciclo de violência, é necessário que a lei seja acompanhada de um conjunto de medidas. Precisamos de capacitação e qualificação na escuta de quem trabalha nas delegacias, diálogo social e campanhas sociais fortes. São necessárias ações diretas com os homens, criação de centros de referência e ajuda psicológica. Os filhos dessas mulheres também precisam ter preferência quando é necessário fazer transferência de escola. Essas ações formam um conjunto de retaguarda para que elas reconstituam suas vidas. A Polícia e a Justiça são apenas uma parte”, afirma Márcia Soares. A especialista aponta que o principal desafio para as vítimas de violência se reconstituírem como sujeitas de direito é contar com uma rede de apoio e recursos econômicos.

Os marcadores sociais também demonstram que mulheres negras e periféricas estão mais vulneráveis a esse tipo de crime. Os dados da 5ª edição do relatório Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, mostram que 64,2% das mulheres vítimas eram negras e 53,6% vivem em cidades do interior. A rede de apoio, além dos amigos e familiares, também é constituída por ONG’s, redes comunitárias, e serviços do poder público, como delegacias especializadas, serviços de saúde e centros de referência. Segundo o Governo do Rio Grande do Sul, apenas 3% das cidades gaúchas possuem casas de acolhimento, são 16 casas, duas delas em Porto Alegre. “Também passamos por um período em que o governo federal desestruturou todos os serviços de atenção às mulheres, que já eram insuficientes. O mesmo aconteceu aqui no estado. A OMS e a OPAS já disponibilizam protocolos internacionais, porque se trata de uma questão de saúde e de assistência social. Se trata de priorizar a vida das mulheres”, completa Márcia.

Além disso, dor é um sentimento tão íntimo e particular, que ainda torna muito complexa a compreensão da violência doméstica. Muitas vezes, a percepção dos primeiros sinais do ciclo de violência podem ser confundidos com apenas um “ele perdeu a cabeça”. “Cada vítima tem uma particularidade, algumas permanecem no ciclo por dependência econômica, outras por dependência emocional. Por isso que a violência doméstica é tão difícil de compreender e de lidar. Não tem uma explicação única, muda de acordo com cada vítima”, afirma a promotora Ivana Machado Battaglin.

Não desistir de quem se é, transformar vulnerabilidades

Se cada vítima possui suas particularidades, não há como apontar quem cai bem ou quem se levanta melhor. Depois de sobreviver a uma tentativa de feminicídio, há quem demore mais para se encontrar, há quem desacredite no amor e na poesia da vida, quem desconfie da própria alegria. Ainda assim, o que une mulheres que experienciaram um trauma como esse não é a condição de vítima, mas sim a decisão de seguir em frente, celebrar seus próprios desejos e quereres. E ao decidirem renascer em uma mesma vida, são mulheres outra vez.

Acesse a matéria no site de origem.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas