Debate eleitoral precisa discutir formas de acolher vítimas e mostrar consequências para agressores e empresas
(Bárbara Ferrito/ Piauí) A história do menino e o lobo narra como um menino entediado finge estar em aflição para atrair a atenção dos adultos da vila. Quando o perigo realmente bate à porta, apesar de seus gritos, os moradores já estão anestesiados: não se compadecem mais, pois acham que é outra pegadinha do menino. Na realidade brasileira, vivemos um conto piorado! Estamos todos um pouco narcotizados, não em decorrência das mentiras de um menino mimado, mas pela sucessão ininterrupta de absurdos e atrocidades a que somos expostos. Essa é uma característica da sociedade paliativa, conceito de Byung-Chul Han, que impede que processemos a dor diante da quantidade gigantesca de informações dolorosas que recebemos. Aos poucos nos tornamos insensíveis. Para quem estuda a história do trabalho da mulher e seu ingresso no mercado de trabalho remunerado, fica claro que as mulheres sempre estiveram envolvidas nos trabalhos de cuidado. Quando elas ingressam no mercado de trabalho, não são acompanhadas na dupla jornada por seus parceiros e colegas, que seguem dedicando-se exclusivamente ao trabalho para o mercado. Isso gera um descompasso entre a disponibilidade de homens e mulheres para o labor.
Essa passagem solitária das mulheres fez com que elas fossem inseridas no mercado não como trabalhadoras, mas como mulheres. Em termos mais simples, as mulheres são encaradas no ambiente profissional da mesma forma que em um bar, em um cinema ou em um momento de privacidade. Sorrisos são confundidos com intimidade, simpatia com permissão.
Para as mulheres, isso gera o peso da constante necessidade de se protegerem de investidas, assédios e olhares. É a ilusão de que roupas, posturas e comportamentos podem blindar uma mulher da violência e do assédio, quando a advogada Mayra Cotta já nos ensinou: o problema não está na roupa. Isso tudo ocorre tão automaticamente, de forma tão naturalizada, que muitas mulheres sequer têm ideia das violências e assédios que sofrem e das quais se protegem.
Uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão com o Instituto Locomotiva demonstra que, quando perguntadas se já sofreram assédio e violência no trabalho, apenas 36% das mulheres confirmam; mas, quando são apresentadas a situações de violência e assédio, esse número sobe para 76%.
Eis o ponto a que queria chegar: 76% das mulheres afirmam terem sofrido violências e assédios no ambiente laboral. Denúncias de assédio não são pontuais ou excepcionais. Estão na nossa própria estrutura de mercado de trabalho, pois é assim que esse mercado encara corpos femininos: como disponíveis, assediáveis, violáveis. Deixemos para os órgãos competentes discutir a autoria dos crimes, e pensemos nas respostas sociais e institucionais ao fenômeno endêmico do assédio sexual e da violência de gênero no mercado de trabalho.