‘Fui vítima de estupro coletivo no interior de São Paulo; 18 anos depois, sigo lutando para que minha voz seja ouvida e meus direitos reconhecidos’
Quando eu tinha 15 anos, fui vítima de violência sexual coletiva por um grupo de jovens numa cidade do interior de São Paulo. Naquela noite, eu saí de casa achando que iria me divertir numa festa com colegas da escola. Era a despedida de um deles, de partida para um intercâmbio, e aconteceu na chácara de uma das minhas melhores amigas dessa época, então eu acreditava estar num lugar seguro.
Fui com outras duas amigas para um esquenta na Mantiqueira para esperar os meninos buscarem a gente. De lá para a chácara dava uns 25 quilômetros de estrada de terra. Eles chegaram atrasados e pareciam bem loucos, mas subimos na caçamba da caminhonete. Quando chegamos na chácara, descobrimos que a festa tinha virado algo mais intimista, só com os meninos da turma.
Ficamos um tempo na beira da piscina, todo mundo conversando, até que sugeriram jogar sueca, um jogo de baralho que quem perdesse tinha de beber. Em dado momento, comecei a perceber que eu estava perdendo repetidas vezes e que talvez isso não estivesse de acordo com as regras, mas duvidei da minha capacidade de avaliar e continuei jogando.
Minhas amigas estavam lá, mas elas precisavam ir embora às 4h. Nessa hora, eu
já tinha vomitado e estava passando mal. Neste momento, um dos rapazes, que era o mais velho do grupo e que estudava medicina, disse que eu tinha 2 opções: ir para um hospital para tomar soro, ou ficar na chácara até de manhã, quando eles me levariam para casa. Eu ouvi quando ele garantiu para minhas amigas que ninguém ia encostar em mim. Não queria que minha mãe me visse daquele jeito, então decidi ficar.
Me estupraram quando eu estava inconsciente
Minhas últimas lembranças são eles me colocando numa cama de solteiro e um deles em cima de mim. Quando acordei, estava nua da cintura para baixo e ouvi muitas risadas, então saí para ver o que estava acontecendo. Descobri que tinham filmado tudo, mas ainda estava mal e voltei para o quarto. Só voltei a acordar quando o estudante de medicina estava me estuprando.
Muito nervosa, chorando, perguntei a ele por que tinha feito isso. Ele me respondeu gargalhando que não tinha sido o único, citou pelo menos 4 nomes e resumiu: “todo mundo te comeu”. Fiquei em choque, fui tentar tomar um banho e fui empurrada para outro quarto, sendo violentada por mais um. Depois eu tomei o banho mais longo da minha vida e o pai de um deles chegou na chácara para me buscar, porque minha mãe estava preocupada. Antes de sair, ele conversou com o filho e os amigos dele.
Enquanto me levava para casa, ele dizia que o melhor a fazer era ficar quieta, afinal era uma cidade machista e as pessoas não iam entender o que tinha acontecido. Ele convenceu minha mãe de que estava tudo certo e eu não tive coragem de falar nada. Pensei que minha mãe fosse me julgar.
Passei uma semana praticamente sem comer, só dormindo e tomando remédio, porque eu sentia dor na vagina e no útero. Minha mãe achou que as dores eram da menstruação, mas não entendia meu desânimo. Uma amiga foi me visitar e saímos para conversar, paramos num lugar e quando cheguei todo mundo me olhou. Tive certeza de que a história tinha vazado e da pior forma possível.
Me diziam: “Vi seu vídeo”
Minha mãe começou a receber e-mails com fotos da chácara, insinuações de que algo havia acontecido ali, mas eu não conseguia contar. Começaram a me falar que tinham assistido um vídeo comigo, só que eu mesma nunca vi. Minha mãe foi ficando cada vez mais cismada com meu comportamento agressivo, algo incomum, até que leu mensagem de alguns dos meninos pedindo desculpas no MSN.
Eu voltei da escola e já tinha um advogado me esperando, minha mãe queria agir o quanto antes. Os estupradores eram parentes de pessoas poderosas na cidade, médicos, promotores… A primeira reação deles foi oferecer dinheiro, e obviamente minha mãe não aceitou. Poderia ser o primeiro passo para punir os estupradores, mas ali começava um novo inferno. Fomos à delegacia, fizemos a ocorrência e levou quase um ano para a denúncia ser aceita.
O promotor responsável pelo caso era casado com a tia de um dos estupradores, então ignorou a confissão deles e destruiu provas, agindo em conluio com as famílias dos acusados. Suas manifestações ao longo do processo pareciam mais preocupadas em me julgar, pelos meus hábitos, por eu ter bebido, do que em responsabilizar os agressores.
Fui obrigada a reviver o trauma diversas vezes, repetindo a mesma história em cada depoimento prestado, como se não bastasse o que já havia passado. Meu advogado precisou pedir o afastamento do promotor ao Ministério Público.
Condição de vítima foi negada
O juiz era amigo do promotor e deu uma sentença que negava a minha condição de vítima de violência sexual. Ele disse que descobrir a vida é tarefa muito excitante e que adolescentes experimentam sua sexualidade na rapidez, na leveza e na diversidade de um beija-flor.
O juiz também deu mais peso às falas contraditórias dos acusados, pois reconheceu que eu não tinha condições de reagir às investidas sexuais, mas considerou isso pouco importante diante da percepção de que eu já era ativa sexualmente.
A narrativa sustentada por ele foi a da dúvida. Uma dúvida cultivada com base em estigmas. Quer dizer que o fato de eu ser ativa sexualmente poderia autorizar investidas sexuais enquanto eu estava inconsciente?
Carrego as cicatrizes físicas e psicológicas
Dezoito anos se passaram e eu ainda carrego as cicatrizes físicas e psicológicas de tudo o que me aconteceu. Tive que sair da cidade, porque as famílias dos estupradores me perseguiram com ameaças e retaliações, e outros moradores apoiaram essa postura. Também fui proibida de estudar em certas escolas e frequentar alguns lugares, até mesmo de manter amigos. Ainda fui agredida fisicamente pela mulher do promotor.
Judicialmente, perdi os processos. Um deles desapareceu por 13 anos, então não tive nem a possibilidade de recorrer da sentença absurda que me colocou como responsável pelo crime cometido contra mim. Enquanto isso, os responsáveis seguem impunes, alguns ocupando cargos públicos e outros em posições de prestígio.
Perdi minha juventude nessa sequência de revitimização que me impuseram. Me afastei da minha mãe e a minha vida nunca mais foi a mesma. Fui diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático e transtorno de personalidade borderline. Minhas relações desde então se tornaram totalmente disfuncionais. Vivi e ainda vivo um verdadeiro pesadelo.