O aborto é criminalizado no Brasil, a não ser nas hipóteses em que a gravidez resulte de estupro, represente risco de vida para a gestante ou quando o feto seja portador de anencefalia. O tratamento dado à matéria é extremamente restritivo, não se alinhando à tendência internacional contemporânea, muito mais liberal.
(Folha de S.Paulo, 22/12/2016 – acesse no site de origem)
Esse cenário pode estar se alterando. Há poucas semanas, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da criminalização do aborto no primeiro trimestre de gestação. A decisão foi proferida em julgamento de caso concreto e não possui efeitos vinculantes para outros processos.
De todo modo, trata-se de precedente importantíssimo, que tende a exercer grande influência sobre a nossa jurisprudência. O tema tem extraordinária relevância social: de acordo com pesquisa recente, ocorrem no Brasil cerca de meio milhão de abortos clandestinos por ano; e aos 40 anos aproximadamente uma em cada cinco mulheres brasileiras já abortou.
A criminalização do aborto envolve grave restrição a direitos fundamentais das mulheres. A imposição da gestação e da maternidade indesejadas atinge profundamente o direito à autonomia, que envolve a prerrogativa do indivíduo de realizar as suas escolhas básicas de vida e de controlar o próprio corpo.
Ela viola a igualdade de gênero, pois instrumentaliza as mulheres e impõe que suportem ônus que não recai também sobre os homens. Acima de tudo, a medida tem impacto desproporcional sobre as mulheres pobres, que, muito mais do que as abastadas, acabam se submetendo a práticas inseguras, com graves riscos à sua vida e saúde.
A proteção da vida futura é também papel relevante do Estado. Todavia, existe um certo consenso internacional no sentido de que a tutela jurídica da vida do feto -que não se equipara àquela conferida à vida da pessoa já nascida- vai aumentando, na medida em que avança a gestação.
É por isso que, na linha da decisão do STF, a maior parte dos países desenvolvidos admite o aborto no primeiro trimestre da gestação -em que ainda não se formou o córtex cerebral, responsável pelas capacidades humanas de sentir emoções e de usar a razão-, mas não o aceita nos estágios finais da gravidez.
De todo modo, um dos mais fortes argumentos contrários à criminalização do aborto é o de que a medida nem sequer é eficaz no seu objetivo de proteger a vida futura. As mulheres dificilmente deixam de abortar em razão da proibição legal, mas passam a fazê-lo em condições mais perigosas e insalubres.
Estudo da Organização Mundial da Saúde e da Fundação Allen Guttmacher demonstra, inclusive, que a taxa anual de abortos é até ligeiramente menor nos países em que a prática é legalizada.
Enfim, há outros meios mais eficientes e humanos de evitar a prática de abortos que devem ser priorizados, como a educação sexual, a distribuição de anticoncepcionais e a adoção de políticas sociais que visem evitar que mulheres abortem por falta de recursos para criação do filho.
Já passou da hora de o Brasil adotar tratamento mais racional e igualitário na questão do aborto. Por isso, a decisão do STF deve ser aplaudida. Ao se pronunciar sobre essa questão, tal como diversas cortes estrangeiras já o fizeram, o Supremo não invade seara exclusiva do Congresso. Afinal, proteger direitos fundamentais diante do arbítrio ou do descaso das maiorias políticas é a função mais nobre e importante de um tribunal constitucional.
Daniel Sarmento é advogado e professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro