Em 25 de novembro comemoramos o Dia Internacional de Luta pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Neste mesmo momento a ONU lança a campanha He for She, que visa unir homens e mulheres na busca pela igualdade de gênero. Importantíssimos também os 3º, 4º e 5º Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: igualdade entre sexos e valorização da mulher, reduzir a mortalidade na infância e melhorar a saúde materna. A efetivação destes objetivos depende de um esforço coletivo.
Qual é o alcance da proteção aos direitos humanos das mulheres? Como compreender neste contexto a violência obstétrica?
Os direitos humanos das mulheres são violados frequentemente no Brasil e no mundo. Em 14 de novembro de 2002, tivemos o caso emblemático de Alyne Pimentel, de 28 anos, que com seis meses de gestação buscou atendimento médico na rede pública de saúde de Belford Roxo, Rio de Janeiro e, mesmo registrando fortes dores, foi liberada após administração de analgésicos. Sem melhora, Alyne retornou ao hospital, onde se constatou a morte do bebê. Submetida, após horas de espera, a uma cirurgia para a retirada da placenta, o quadro se agravou e ela precisou ser transferida para um hospital em Nova Iguaçu, operação realizada com grande demora. Nele, devido à falta de atendimento, Alyne faleceu no corredor do hospital em decorrência de hemorragia digestiva.
O caso foi levado ao conhecimento do Comitê CEDAW (Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) da ONU em 2011 e o Brasil foi condenado ao pagamento de indenização por negligência no serviço público de saúde. Foi a primeira condenação internacional do Brasil em razão de morte materna. É preciso enaltecer que o Brasil encontra-se muito bem representado no Comitê CEDAW pela professora dra. Silvia Pimentel.
Sabemos que o arcabouço dos direitos humanos das mulheres reflete, ao longo do seu desenvolvimento, diversas vertentes do movimento feminista. Como ensina a professora dra. Flavia Piovesan: “Não traduzem uma história triunfal, mas refletem as ações e lutas emancipatórias na busca pela proteção à dignidade e prevenção ao sofrimento humano.” Sob o aspecto histórico existem mulheres que marcaram suas épocas. No ano de 1793, Olympe de Gouges, uma precursora do feminismo mundial, escreveu a “Declaração sobre os Direitos das Mulheres e das Cidadãs” e por isso foi morta na guilhotina. Anos mais tarde, Simone de Beauvoir marcaria época com sua célebre frase “não se nasce mulher: torna-se”.
Os tratados internacionais foram incorporando gradativamente as reivindicações das mulheres, como o direito à igualdade, à liberdade sexual e reprodutiva e o direito à diversidade, sob a perspectiva da raça/etnia. A incorporação destes valores recebeu impulso do movimento de mulheres, como na audiência pública para discutir violência obstétrica realizada em 17 de novembro de 2014, no Ministério Público do Estado de São Paulo.
As agendas essenciais para a construção dos direitos humanos das mulheres devem incluir: o combate à discriminação e à violência; e a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos. Um dos problemas que mais aflige mulheres em todo o mundo é a violência de gênero, que não deve ser considerada uma prática natural e costumeira: assim como é aprendida, pode e deve ser abandonada, prevenida e combatida.
As diversas formas de violência obstétrica
Existem múltiplas formas de violência de gênero, como a violência doméstica (prática comum em toda América Latina, Europa, Ásia), violência sexual (prática comum em todo o mundo), tráfico de mulheres (prática comum em todo o mundo e que merece especial atenção do Brasil nas áreas de fronteira), mutilação genital (prática comum na África e Ásia), ataques a mulheres com ácidos (prática comum na Ásia) e a violência obstétrica (prática comum em distintos países).
No meu entendimento, a violência obstétrica é um termo relativamente novo para descrever problemas antigos, que possuem três aspectos inter-relacionados: os direitos de gênero, o direito à saúde e os direitos humanos. Pode caracterizar-se de distintas formas: recusa à admissão ao hospital (Lei nº 11.634/2007), impedimento de entrada de acompanhante (Lei nº 11.108/2005), violência psicológica, cesariana desnecessária e sem consentimento, impedimento de contato com o bebê e o impedimento ao aleitamento materno. Países como a Argentina, México e outros já possuem legislação tipificando a conduta da violência obstétrica. O sistema jurídico brasileiro já possui legislação genérica protetiva para tratar da violência obstétrica.
Por outro lado, a questão não pode ser tratada de forma superficial, necessitando um amplo debate com a participação da sociedade civil, das autoridades e dos médicos. Ressalte-se que existem inúmeros médicos obstetras dedicados, estudiosos e zelosos que procuram diuturnamente melhor atender as suas pacientes. Não podemos deixar de ressaltar que, em alguns casos, os profissionais da área médica podem ser estudiosos, responsáveis e atentos às necessidades da gestante e aos seus direitos fundamentais, mas a estrutura do serviço pode ser falha, com hospitais sucateados e sem os instrumentos necessários, não oferecendo ao próprio médico as condições adequadas de trabalho.
Respeito aos direitos e à autonomia da mulher
Portanto, defendo também que políticas públicas devem ser implementadas, com urgência, para assegurar ao médico pleno acesso aos instrumentos de trabalho. A afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos depende da plena assistência à saúde para as gestantes e aos seus bebês. Um dos momentos mais importantes e marcantes na vida da mulher e de toda a família, do pai também, é o nascimento de um filho.
Toda mulher tem direito a uma assistência completa à saúde, a um pré-natal, um pré-parto, um parto, um pós-parto, em situação de abortamento ou não, de qualidade, possibilitando um nascimento saudável, protegendo sua vida e também a vida do bebê, em consonância com a Constituição Federal (artigo 196) e com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação sobre a Mulher (1979), Convenção CEDAW.
A audiência pública sobre violência obstétrica realizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, em 17 de novembro de 2014, em parceria com a sociedade civil, representada pela ONG Artemis, com a Defensoria Pública, o Ministério Público Federal, a Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, bem como participação de membros dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, é um bom sinal no sentido de que um pacto entre a sociedade civil e os poderes constituídos é imprescindível para que caminhemos na direção da efetivação do direito à autonomia da mulher, ao respeito à sua dignidade, prevenindo mortes maternas evitáveis e garantindo, assim, o pleno acesso à saúde e a um atendimento médico de qualidade.
Fabiana Dal’Mas Rocha Paes é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela UNSW (Sydney, Austrália) e integrante do Núcleo de Direitos Sociais de Sorocaba e Região.
Publicado originalmente no site da Associação Paulista do Ministério Público.