Neon Cunha, 44, não precisa de um profissional da saúde para se dizer mulher: a designer transexual conquistou na Justiça o direito de mudar o nome e o gênero de seus documentos sem ter de apresentar atestado médico. A decisão, do juiz Celso Lourenço Morgado da 6ª Vara Cível de São Bernardo do Campo (Grande SP), foi divulgada na sexta (28).
(Folha de S.Paulo, 31/10/2016 – acesse no site de origem)
Até então, a Justiça brasileira exigia, para mudar o sexo nos documentos de um cidadão, o diagnóstico de disforia de gênero, transtorno elencado na Classificação Internacional das Doenças, em que a pessoa não se identifica com o gênero associado à genitália com que nasce.
“Ninguém esperava, mas é um movimento de conquista. Isso não é para mim, é para a sociedade toda”, diz Cunha, que há três décadas trabalha na Prefeitura de São Bernardo, onde chefia uma equipe.
A ação de retificação de registro civil é de maio: pedia que nos documentos constasse Neon, e não Neumir Afonso, e que no campo “sexo” constasse “feminino”. A designer também requeria “direito a morte assistida”, caso não lhe fosse concedido o direito a ser mulher nos documentos sem um diagnóstico médico.
IDENTIDADE
“Não dormi direito, fiquei maluca, não dá para descrever”, afirma Neon, na sua casa, enquanto lia a sentença.
Em um dos trechos do documento, o juiz afirma: “A transexualidade não é uma condição patológica, e a identidade de gênero é autodefinida por cada pessoa”. Na ação, Neon montou um dossiê com fotografias, um depoimento em primeira pessoa sobre sua história de vida e relatórios de psicólogos sobre si mesma.
“Os documentos são os mesmos que se usam em retificação de registro civil de pessoas cis [aqueles que se identificam com o gênero atribuído à genitália com que nasceram]”, diz Eduardo Mazzilli, advogado do caso.
“Isso é absolutamente novo”, declara Dimitri Sales, Presidente do Instituto Latino-Americano de Direitos Humanos, que atua há dez anos na defesa de diversos grupos sociais. “Uma decisão dessas, em que o direito dispensa a biologia e entrega na mão do sujeito decidir sobre sua personalidade, sua vida.”
RECURSO
O Ministério Público de São Paulo tem 15 dias úteis para entrar com recurso contra a decisão –caso tome a medida, a ação segue para o Tribunal de Justiça do Estado. “Vamos continuar apresentando nossos argumentos”, declara o advogado Mazzilli, que se diz disposto a ir até o Supremo Tribunal Federal, se for o caso.
Promotores pediram na ação, no fim de maio deste ano, que Neon passasse por uma perícia e apresentasse um laudo atestando que se concebia como mulher. “Trata-se de matéria afeta à área médica e não meramente comportamental”, informava o documento do Ministério Público.
Procurada pela reportagem, a promotoria não comentou o caso.
Chico Felitti