“Os fatos fazem todos parte do problema, não da solução”, dizia Wittgenstein. A problematicidade dos fatos em questão é alarmante: persistem, não apenas em nossa sociedade, mas também na Universidade brasileira, atitudes geralmente sutis, mas, em muitos casos, debochadamente descaradas, que lidam com as diferenças de forma desrespeitosa, discriminatória e reprodutora de preconceitos. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon demonstra com clareza estes fatos em relação à violência contra as mulheres. Segundo o estudo, 67% das alunas brasileiras já sofreram algum tipo de agressão ou assédio nas universidades. Além disso, a pesquisa revela que 42% das estudantes entrevistadas já sentiram medo de sofrer algum tipo de violência no ambiente acadêmico.
As “Diretrizes sobre Assédio Moral, Sexual, Discriminação e Desigualdade na Faculdade de Direito da PUC-SP”, recentemente aprovadas por unanimidade pelo colegiado diretivo do curso, podem não ser, evidentemente, a solução do grave problema, mas representam passo importante e em consonância com o histórico alinhamento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a defesa dos Direitos Humanos.
A Universidade é espaço público privilegiado de debate, crítica e discussão. Mas possui inimigos externos e internos poderosos e enfileirados de forma orquestrada. Dentre esses adversários, os mais nefastos são aqueles avessos à solidariedade, os adeptos da intransigência e os que se ufanam de seus próprios estereótipos e preconceitos. São totalitários, radicais e neofascistas. As mesmas ameaças que esses grupos lançam à sociedade democrática, eles dirigem – do interior das Universidades – àquilo que existe de mais característico no ensino superior: não reconhecem nem respeitam o outro e o diferente. Sem isso, não há pluralidade e, consequentemente, não há, também, Universidade digna do nome.
Há poucos meses, noutra importantíssima Faculdade de Direito brasileira, alunos afixaram nos muros da escola “perolas” dessa postura arrogante e inadmissível proferidas por professores. Eram os registros de “piadas” de mau gosto, “brincadeiras” de fundo preconceituoso e “exemplos” claramente discriminatórios que povoavam as aulas. Dentre os estudantes, o acirramento de violências do mesmo tipo também é comum. Infelizmente, são os fatos que fazem parte do problema a ser enfrentado. Não se trata de reproduzir, fora do contexto cultural norte-americano, a controvertida retórica do “politicamente correto” – algumas vezes autoritária e exagerada –, mas de registrar que a sociedade brasileira não aceita mais práticas de desrespeito à diversidade ou supressão de diferenças legítimas. O mesmo se diga do direito brasileiro, que igualmente repudia discriminações. Mas, em nossas Universidades e em nossas Faculdades de Direito, inexplicavelmente, os ranços preconceituosos ainda são fortes. E, pior, bloqueiam o debate e o diálogo exatamente onde mais isso deveria ocorrer.
Daí a importância da iniciativa da Faculdade de Direito da PUC-SP, que teve sua origem em proposta elaborada pelo Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade, como resposta a caso noticiado de discriminação, ocorrido no final de 2014. Seu objetivo inicial era inserir o tema do assédio sexual na perspectiva de gênero. Durante sua elaboração, vivenciou-se processo de expansão de metas, com a inclusão de outros fatores, tais como aqueles vivenciados por questões econômicas e raciais, comuns aos recém-ingressados alunos do PROUNI. Essa elaboração, de fato, representou avanço qualitativo das diretrizes, considerando, principalmente, o recorrente entrecruzamento dos vários elementos de exclusão, o que resulta em casos de extrema vulnerabilidade.
Merece destaque o compromisso humanista da proposta, que projeta seu cerne em elementos tais como a educação, sensibilização, conscientização e mudança de padrões socioculturais, visando à eliminação de preconceitos e práticas discriminatórias, bem como destacando o papel do professor no desenvolvimento de uma visão de mundo solidária. Em meio à intolerância e ao individualismo exacerbado da sociedade capitalista contemporânea, pós-moderna, o estabelecimento de diretrizes de enfrentamento aos estereótipos de gênero, raça, cor, idade, etnia, origem, orientação sexual e identidade de gênero (LGBT), situação social, econômica e cultural, dentre outras, representa mensagem de esperança e materializa importantes princípios da Constituição Brasileira de 1988, tais como os de igualdade e cidadania.
Nossa Constituição, fruto do empenho da sociedade civil em efervescente processo de construção democrática, contempla de forma generosa os direitos fundamentais de indivíduos e grupos – direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. No entanto, a quase 30 anos de sua adoção, constata-se um estreitamento das possibilidades ali elencadas. Lamentavelmente, ainda estamos muito longe da realização dos direitos formais conquistados. O grande desafio é retomar o ânimo crítico e transformador da década dos 80, com firme oposição aos resquícios e retrocessos antidemocráticos que afrontam a cidadania e a igualdade de milhões de brasileiras e brasileiros. A Universidade é espaço público privilegiado para tal.
Silvia Pimentel é integrante e ex-presidente do Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres, da ONU (Comitê CEDAW). Professora doutora em Filosofia do Direito pela PUC-SP e coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade.
Celso Campilongo é chefe do Departamento de Teoria do Direito da PUC-SP e professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Para acessar o artigo na íntegra, bem como as Diretrizes sobre assédio moral, sexual, discriminação e desigualdade na Faculdade de Direito da PUC/SP, clique aqui