A anulação do julgamento do caso Bill Cosby nos deixou em uma encruzilhada sobre mais uma questão: estaria o sistema jurídico estruturado contra as mulheres em casos de violência sexual, onde há somente a palavra da mulher contra a do homem?
(UOL, 22/06/2017 – acesse no site de origem)
Para especialistas jurídicos, o julgamento passou por um prisma atipicamente público as ambiguidades de casos como esses: o questionamento da credibilidade das mulheres, a presunção legal de inocência, procedimentos policiais inconsistentes e a própria ciência da memória.
Em muitos casos, uma tensão central persiste entre o princípio legal fundamental de que um réu é inocente até prova em contrário e a capacidade de provar a agressão sem uma testemunha ou provas físicas que a corroborem. Jeannie Suk Gersen, uma professora da Faculdade de Direito de Harvard, tem uma teoria provocadora: existe uma parcialidade inerente contra as mulheres, mas que não advém do machismo.
“Nós optamos por criar nosso sistema de forma que ele esteja a favor do réu em todos os casos”, ela disse. “Então, em áreas onde a maior parte dos réus são homens, e a maior parte dos acusadores são mulheres, há uma parcialidade estrutural a favor dos homens.
Mesmo que conseguíssemos nos livrar do machismo, ainda assim seria muito difícil vencer esses casos. Acho que é com isso que temos de conviver no lado criminal, porque calculamos que esse é o equilíbrio certo de valores”.
Como geralmente não há testemunhas em casos como esses, os jurados podem ter de decidir se um crime foi de fato cometido. Gersen diz que como os advogados de defesa sempre tentarão atacar a credibilidade de quem acusa, e como inconsistências na memória são comuns, muitas vezes é fácil convencer pelo menos um jurado de que não há provas acima de qualquer suspeita.
Ela diz que casos como esses teriam chances melhores de condenação em jurisdições civis, onde o grau de prova não é tão alto. Mas ela admite que isso significaria que as penas seriam monetárias, e não sentenças de prisão.
Outros argumentam que os tribunais ainda refletem os preconceitos culturais persistentes sobre a credibilidade das mulheres. Laura Beth Nielsen, diretora do Centro de Estudos Jurídicos e professora de sociologia na Universidade de Northwestern, diz que é importante a salvaguarda do devido processo legal e a proteção constitucional da presunção de inocência e não da culpa, mas que os jurados muitas vezes presumem que as mulheres não estão falando a verdade.
“Sim, acontece de as pessoas mentirem”, ela diz. “Mas a presunção é de que ela sempre está mentindo. Mas por que pensamos que as pessoas mentiriam para estar na posição onde essa mulher está agora ?”
Gersen diz que, teoricamente, uma solução pode ser abandonar o padrão da dúvida razoável em casos criminais—uma linha de conduta que ela não endossa. Muitos campi universitários exigem um grau baixo de prova em audiências disciplinares: um réu pode ser considerado culpado se houver uma “preponderância de prova” (mais provável do que menos).
Como resultado, surgiram debates excruciantes sobre se homens acusados de violência sexual e estupro estariam recebendo o devido processo legal, e se as mulheres também estariam sendo tratadas de forma justa. Outra diferença crucial entre processos civis e criminais é que acordos em processos civis podem determinar que o acusador não discuta o caso, enquanto processos criminais permitem que as vítimas falem publicamente após um veredito.
A memória do acusador—especialmente se houver inconsistências—também é muitas vezes testada no tribunal. Mas especialistas em memória dizem que inconsistências são comuns e compreensíveis em casos de violência sexual.
Jim Hopper, um consultor independente e professor associado de psicologia na Faculdade de Medicina de Harvard, diz que muitos julgamentos sobre violência sexual naufragam porque poucos jurados ou policiais entendem sobre neurobiologia da memória ou a melhor forma de se interrogar uma vítima de trauma.
“Nós sabemos que o estresse e o medo podem ter efeitos sobre como as memórias são codificadas e armazenadas”, ele diz.
Ele explica que em geral a vítima tem uma lembrança vívida do momento do ataque porque o cérebro está inundado de hormônios de estresse como a adrenalina, que podem melhorar temporariamente a capacidade de absorver uma informação.
Pode ser mais fácil relatar o momento do ataque do que o que aconteceu antes ou depois, porque o cérebro atribui menos importância emocional a esses acontecimentos. (No caso de Cosby, Andrea Constand testemunhou que lhe deram uma droga, embora os efeitos sobre sua memória de curto ou longo prazo não estejam claros.)
O processo de investigação em si também pode distorcer a memória, de acordo com Hopper, uma vez que investigadores muitas vezes tratam denunciantes de abusos sexuais como suspeitos de crimes, o que pode aumentar o medo e prejudicar a memória.
“Isso faz com que eles tenham problemas de credibilidade depois”, ele diz, embora ressalte que não conhecia os detalhes do caso de Cosby.
Quando Hopper dá treinamento para policiais, ele os orienta a fazerem perguntas abertas e não tendenciosas aos acusadores. Ele também os lembra de que após um tiroteio ou um incêndio, policiais e militares muitas vezes fazem relatos inconsistentes ou fragmentados do que aconteceu.
Programas de treinamento para a polícia sobre como tratar vítimas de violência sexual foram adotados em cidades como San Diego, Austin (Texas) e Filadélfia.
Mas desistir do sistema criminal não é a resposta, diz Elizabeth Schneider, uma professora da Faculdade de Direito de Brooklyn. Com o tempo, ela diz, a evolução da forma como o estupro é compreendido produziu condenações criminais por estupro marital, algo que antes era considerado impossível; estupro quando as partes já haviam feito sexo consensual antes; e estupro quando as partes se conhecem.
Cerca de 68% dos casos de estupro terminam em condenações, um índice similar ao de casos de roubo domiciliar, de acordo com a Agência de Estatísticas da Justiça. Mas especialistas jurídicos dizem que somente uma fração dos casos de violência sexual é levada à Justiça, e que ainda é muito mais difícil conseguir condenações em casos nos quais as partes se conhecem.
Schneider propõe algumas soluções possíveis. Quando os jurados são interrogados durante a análise preliminar da aptidão do júri, e quando os juízes dão suas instruções aos membros do júri antes da deliberação, os jurados podem ser instruídos sobre como vítimas de estupro e de violência sexual costumam se comportar, sobre as inconstâncias da memória descritas por Hopper, e sobre o fato de que não é incomum uma mulher continuar o contato com alguém que a tenha violentado, especialmente quando o homem pode influenciar sua carreira.
No caso de Cosby, diz Schneider, o juiz poderia ter permitido o depoimento de outras das dezenas de mulheres que se manifestaram, algumas após décadas de silêncio, para acusar Cosby de tê-las drogado e violentado. (O juiz no julgamento de Cosby permitiu o depoimento de mais uma mulher.).
Embora os juízes precisem estar alertas para não julgar réus por crimes que não estejam em questão em um caso particular, essas acusações e circunstâncias notavelmente similares poderiam ser relevantes e, portanto, poderiam ser ouvidas por um júri, ela diz.
Nielsen diz acreditar que a próxima fronteira jurídica seria que mais Estados adotassem o padrão californiano de “sim é sim”—ou seja, que as mulheres precisam dar permissão afirmativa para o sexo. Ela argumenta que o constrangimento que isso poderia criar seria compensado pelas proteções que daria tanto a homens quanto a mulheres—proteções que no fim podem ser usadas no tribunal. Hoje existem alguns aplicativos que permitem que as mulheres registrem a decisão do consentimento ou da recusa para o sexo.
Essas ideias foram alvo de chacotas e críticas, segundo as quais o consentimento formal acabaria com a paixão e o romance.
“É, isso não soa super-romântico, e espero que possamos criar gerações de homens que entendam que de fato precisam ter o consentimento”, disse Nielsen.
A questão é como equilibrar a presunção de inocência com a justiça para mulheres que foram violentadas. Gersen disse que ela entendia as limitações das soluções civis: uma mulher poderia não obter uma compensação significativa se seu agressor não tivesse dinheiro, ou os jurados poderiam presumir que os acusadores foram motivados por dinheiro.
“Não existe uma solução feliz aqui”, ela disse.
Cathy Young, uma editora colaboradora da revista “Reason”, alerta contra a tendência de interpretações exageradas do caso Cosby, que ela acredita ter acontecido nas mídias sociais.
“Passar a mensagem de que não adianta nada”, ela diz, “de que você não vai conseguir justiça procurando a polícia, isso é um desserviço para as mulheres”.
Susan Chira