No Brasil, há 13 feminicídios por dia — um crime de acentuada gravidade, a revelar a violência de gênero, que carrega um componente essencialmente cultural
(O Globo, 17/08/2017 – acesse no site de origem)
Morta com golpes de martelo, jogada contra um ônibus, tendo seu corpo carbonizado, Mayara Amaral, de 27 anos, teve sua vida brutalmente interrompida em 26 de julho. Era uma promissora e jovem violonista, pesquisadora e professora de música, em Campo Grande. Foi assassinada por ser mulher, com requintes de crueldade, vítima da violência baseada em gênero, caracterizada como feminicídio.
No Brasil, dados registram 13 feminicídios por dia — um crime de acentuada gravidade, a revelar a violência de gênero, que carrega um componente essencialmente cultural, baseado em relações assimétricas de poder entre homens e mulheres. Para a ONU, a violência de gênero é uma forma de discriminação que afeta seriamente o pleno exercício de direitos e liberdades das mulheres.
Para a Corte Interamericana, o feminicídio constitui homicídio de mulher por razão de gênero, com um alto grau de violência (incluída a violência sexual), em um contexto de discriminação e impunidade. O feminicídio viola os direitos das mulheres à integridade física, psíquica e moral, à dignidade e à própria vida. Em casos de violência contra as mulheres, destaca-se, ainda, a chamada “discriminação interseccional” (ou discriminação múltipla), quando à condição de mulher somam-se vulnerabilidades radicadas nas perspectivas étnico-racial, geracional, dentre outras — como é o caso da violência agravada que alcança as afrodescendentes, as indígenas, as meninas, as idosas e as com deficiência.
No caso González e outras (caso “Campo Algodonero”, 2009), a Corte Interamericana condenou o México, em virtude do desaparecimento e morte de mulheres em Ciudad Juarez, sob o argumento de que a omissão estatal estava a contribuir para a cultura da violência e da discriminação. No período de 1993 a 2003, estima-se que de 260 a 370 mulheres tenham sido vítimas de assassinatos, em Ciudad Juarez. A sentença demandou do México o dever de investigar, sob a perspectiva de gênero, as graves violações ocorridas, garantindo direitos e adotando medidas preventivas. Este caso contribuiu para a adoção da lei que tipifica o feminicídio no Brasil (Lei nº 13.104/2015, que o prevê como circunstância qualificadora do crime de homicídio), bem como para a adoção do Protocolo Latino-Americano para Investigação de Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero.
Outro caso emblemático refere-se ao caso Maria da Penha, decidido pela Comissão Interamericana. Em 2001, a comissão recomendou ao Estado, dentre outras medidas, “prosseguir e intensificar o processo de reforma, a fim de romper com a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil”. Adicionou que se tratava de uma tolerância sistemática, que perpetuava “as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher”. Em 7 de agosto de 2006, foi adotada a Lei 11.340 (a denominada Lei “Maria da Penha”), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, estabelecendo medidas para a prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência.
A violência contra a mulher alimenta-se da “cultura da violência contra a mulher”. Por consequência, o efetivo combate à violência contra a mulher requer o combate à “cultura da violência contra a mulher”, fomentada pela injustiça cultural dos preconceitos, estereótipos e padrões discriminatórios, que constrói a identidade de homens e mulheres, atribuindo-lhes diferentes papéis na vida social, política, econômica, cultural e familiar.
Em face da crescente intolerância e fortalecimento do discurso do ódio, em que avançam doutrinas de superioridade baseadas em diferenças (sejam de gênero, origem, nacionalidade, raça, etnia, diversidade sexual, idade, dentre outras), a diferença passa a ser tomada como fator a aniquilar direitos. Daí a importância da educação em direitos humanos, inspirada nos princípios da igualdade, da dignidade, da inclusão e da não discriminação, conforme a Declaração da ONU sobre Educação em Direitos Humanos de 2011. Para a Unesco, o processo educacional deve ser orientado por valores, atitudes e habilidades voltadas ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, com vistas à criação de uma cultura de respeito aos direitos humanos; ao senso de dignidade; à promoção do diálogo, tolerância e igualdade de gênero. Para a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a educação é essencial para a promoção dos direitos humanos, da igualdade de gênero, da cultura da paz e da não violência e da valorização da diversidade.
Afinal, o combate à cultura da negação e violação a direitos requer o fortalecimento da cultura da afirmação e promoção de direitos, sobretudo do mais essencial direito ao respeito e à dignidade.
Flávia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP é secretária Especial de Direitos Humanos; Silvia Pimentel é professora de Direito da PUC/SP e integrante do Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher